“Escutar é um acto político.” Celebrar Abril também é música
Na conferência “Passa o Micro”, deu-se a palavra a quem faz música hoje. Os 50 anos do 25 de Abril foram pretexto para a reunião na Casa da Música.
“Passa o Micro” foi um dia dedicado a debater e a pensar os caminhos que a música tem trilhado ao longo dos últimos anos. Desde a Revolução de Abril, o percurso comum tem sido marcado por conquistas - na forma como se faz e se mostra a música, na sua aprendizagem e na liberdade com que diferentes rumos se foram definindo. Para a conversa, o PÚBLICO e a Casa da Música chamaram, na quarta-feira, músicos, professores, agentes e produtores.
O desafio feito a Quim Albergaria (Paus, Bateu Matou) para “dar o tom” e fazer uma espécie de leitura do estado da arte foi, ele próprio, um exercício de liberdade sobre “o lugar de fala” que a música é e deve ser. A linguagem da música e o diálogo que proporciona “amplificam o que é individual e acessibilizam-no ao universal”, defendeu o músico. Para ele, isto "é fundamental para o exercício diário e sempre em construção da identidade de um povo”. A música que une, “clarifica ideias e as amplifica”. E se o propósito da própria conferência era procurar respostas, Quim Albergaria não hesita no que toca ao papel da música na democracia: “Quando é ouvida, a música obriga a ver.”
Orgulhosamente misturados
Antes de passar o micro, Quim Albergaria olhou para o passado para melhor perceber o presente. Há 50 anos, a natural conversa entre continentes era censurada e “a música só ia numa direcção”. Mas a nossa identidade cultural é “resultado da convergência e convivência de identidades” e o que acontece hoje é reflexo dessa identidade comum. “Orgulhosamente misturados”, mote do primeiro painel do dia, não foi senão uma afirmação da nova realidade que é, afinal, a original, a de sempre. Os músicos Dino D'Santiago, Pedro Coquenão (Batida), Marco Castro (Throes & The Shine) e Ana Lua Caiano são de gerações diferentes, mas é comum a forma como a música que criam acaba por ser “mais progressista do que o próprio país", como afirmou a moderadora da mesa, Inês Nadais, editora de Cultura do PÚBLICO. E tocaram-se também os tons da democracia actual. Será, como Pedro Coquenão lança, uma “dança infinita”?
A escolha dos convidados e dos temas foi um pretexto para celebrar Abril e também para perceber o impacto que a democracia teve na música e no contacto com outras realidades, como contextualizou o director artístico da Casa da Música, António Jorge Pacheco. As imensas revoluções às quais tem sido sujeito este sector, como a transformação e a aceleração contínua que o digital trouxe, foram outro dos pontos comuns aos diferentes painéis.
Ao início da tarde, o debate sobre a internacionalização da música portuguesa tocou a provocação lançada na abertura da conferência por David Pontes, director do jornal, sobre a falta de uma cultura pop mais exultante em Portugal, em contraponto ao que se passa na vizinha Espanha e ao estatuto que alcança a música feita por espanhóis. Fernando Ribeiro, dos Moonspell, Júlio Resende, pianista, João Barradas, acordeonista, Márcio Laranjeira, da produtora Lovers & Lollypops, e Marta Pereira da Costa, guitarrista, partilharam as suas experiências, percepções e angústias pela falta de apoio sustentado à internacionalização. Se os músicos até “fazem bem a sua parte”, Fernando Ribeiro aponta aos decisores e ao próprio público uma certa responsabilidade, para que “melhor entendam a profissão” e para que seja possível, genericamente, que os músicos se sintam apoiados no seu talento.
Encontrar um denominador comum
O último painel do dia procurou discutir o que é ser “um músico 360º” no tempo das redes sociais e do streaming. A discussão acabou por ser algo acesa entre o erudito e o alternativo, entre as redes sociais e o contacto real com os artistas. Vanessa Pires, responsável de uma empresa de gestão de artistas, Ianina Khmelik, violoncelista, PZ, músico, e João Bruno Soeiro, da Musiversal, foram os intervenientes de um painel em que se falou da “evolução” no sentido da aceleração que o digital trouxe e na necessidade de os músicos se adaptarem à nova realidade de autopromoção e de um certo multitasking. Antes houve um painel dedicado à educação musical, em que os diferentes intervenientes concordaram com o papel crucial da educação e com os sucessos conseguidos nos últimos anos, muito graças à emergência das escolas profissionais. Consenso entre Gabriela Canavilhas, professora e ex-ministra da Cultura, André Neves (Maze), músico, o maestro Pedro Neves e Nuno Alves, da Escola de Rock de Paredes de Coura.
O dia foi longo e rico na partilha de experiências e na vontade de encontrar um denominador comum às diferentes áreas musicais que se cruzaram na Casa da Música, mas que nem sempre dialogam. Raquel Castro, “facilitadora cultural”, que tomou o micro para a conclusão, reforçou a importância de encontrar esse ponto de convergência entre todos.
A manipulação e propaganda que "procura silenciar o outro” são aquilo que devemos combater. Os valores que prezamos, e que afinal não estão garantidos, são aquilo por que devemos combater. E para Raquel Castro é precisamente a cultura e a educação "que nos salvam desse lugar de silenciamento e de opressão”. Para isso, é essencial que se estimule o esforço nas escolas, dos decisores políticos e que se fale mais de forma transversal de todas as áreas. Foi com esperança que terminou, segura de que a música tem cumprido o seu papel na democracia. A música é “um fenómeno humano que implica um entendimento”, uma troca permanente - “uma conversa”, como Quim Albergaria referia no início do dia. “Escutar é um acto político”, disse Raquel Castro, e é nesse acto de escutar que se cria diálogo.
É possível rever a conferência “Passa o Micro” no Ao Vivo do PÚBLICO