sonhar: verbo intransitivo

Poesia Pública é uma iniciativa do Museu e Bibliotecas do Porto comissariada por Jorge Sobrado e José A. Bragança de Miranda. Ao longo de 50 dias publicaremos 50 poemas de 50 autores sobre revolução.

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1. Ter um sonho ou sonhos.
2. Fantasiar; devanear.
3. Ter ideia fixa.
4. Cuidar em.
5. Pensar com insistência em.
"sonhar", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa

1.

pedem-me que escreva poemas
sobre revolução
mas hoje acordei triste e
não se fazem revoluções
sem alegria.

há quanto tempo não festejamos?

há quanto tempo não há
dinheiro para comprar flores?
há quanto tempo não há
tempo para plantar uma casa?

(uma casa para uma família
demora
200 a 500 mil euros
a plantar)

eu não quero sair daqui.
não quero, não quero,
conheço estas pessoas
o cheiro destas ruas a padaria
que tem o melhor pão o restaurante
que já esteve
tantas vezes
com o sinal de
trespasse
volta e meia retiram-no
e nós pensamos, felizes,
é desta que o senhor arnaldo se safou,
mas umas semanas depois
lá volta o raio da placa
ou então observamos
o homem do café da frente
que com os seus setenta anos
ainda vende tabaco avulso,
abre estaminé sete dias por semana:
ele e a mulher, sete dias por semana ali,
das nove da manhã às nove da noite,
nunca os vi de férias
nunca os vi felizes
imagino se terão os seus corpos uma forma própria
do lado de trás daquele balcão

e é triste mas eu prefiro
esta coisa triste que são as ruas que conheço
a qualquer outra coisa triste também,

o ruy belo tinha aqueles versos
em que acredito tanto,
“não achas que a esplanada
é uma pequena pátria
a que somos fiéis?”

quanto a isso: já mudei de país, sim,
voltei, sim, decidi ficar, sim
a verdade é que as esplanadas
são tão belas aqui como em qualquer
outro lugar

e se fiquei foi mais por teimosia
que patriotismo, é que há qualquer
coisa nesta língua
que me prende à terra
e isso é uma espécie de maldição.

2.

ontem fomos passear de mãos dadas:
apontamos, sonhando,
para cada uma das casas
que não poderemos comprar

nessa mesma noite
sonhei que escolhia a cor
das cortinas da nossa futura janela

(falo de uma janela rachada,
matematicamente apontada
para um mar que não se alcança
à primeira vista)

assim de repente, já que há
utopia e verbo intransitivo, peço também
um alpendre, uma varanda,
a felicidade serem dois metros quadrados
suspensos pelo sonho de qualquer coisa
ainda por cumprir

sou francamente ignorante em quase tudo
e não tenho muitas certezas
mas quero uma casa
onde possa parir
um ou dois filhos
vê-los crescer
ficar muito feliz
por pô-los no mundo
e anos mais tarde muito enraivecida
por finalmente ter tempo para isso

e deste modo,
engelhada, quase ausente,
sairei um dia à rua de chinelos
só comprar flores
(mesmo que fora da época,
mesmo que ainda faça frio em abril,
isto, se ainda houver abril),

mas sim, sairei,
com algumas lágrimas
muitas memórias e um cravo antigo
pregado por dentro do corpo

e voltando a casa
prometo sentar-me à janela,
para com todo o vagar
assistir ao incêndio.

não, daqui eu não saio:
estas são as ruas que plantei
na minha memória futura.

3.

as cortinas com que sonhei
são leves, diáfanas,
dançantes:
são tão vermelhas
que ardem vivas,

como labaredas inaudíveis
sobre o mar.


Francisca Camelo nasceu no Porto em 1990: é poeta e diseuse. Tem poemas em diversas antologias e revistas, tendo sido traduzida em espanhol, grego, francês e alemão. Autora dos livros Cassiopeia; Photoautomat; O Quarto Rosa, A Importância do Pequeno-almoço e Quem me comeu a carne. Organiza encontros de poesia e conversas com outros poetas, no seu projecto Sin.cera.

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