A fotografia do ano da World Press Photo: uma palestiniana abraça o cadáver da sobrinha
Prémios World Press Photo anunciados esta manhã reflectem o ano que passou: as guerras (na Ucrânia e no Médio Oriente) e os migrantes no panorama global, família e demência no foco da proximidade.
O fotojornalista Mohammed Salem, da agência de notícias Reuters, é o autor da Fotografia do Ano da World Press Photo 2024 com um testemunho dos estilhaços da guerra no Médio Oriente, anunciou a organização na manhã desta quinta-feira. Mulher Palestiniana Abraça o Cadáver da Sua Sobrinha é uma imagem pungente que, evocando a pintura renascentista, conta uma história dos últimos meses — Inas Abu Maamar dá colo ao corpo da sobrinha de cinco anos, Saly, que morreu junto à sua mãe e à sua irmã quando um míssil israelita atingiu a casa onde moravam em Khan Younis, na Faixa de Gaza. É a segunda vez que Salem recebe o prémio máximo da World Press Photo, e com a mesma temática.
Dois dias antes, a mulher de Mohammed Salem dera à luz o primeiro filho do casal. Para o fotógrafo, a imagem que agora conquistou o reconhecimento de um dos mais importantes e mediáticos prémios de fotografia do mundo é “um momento poderoso e triste que resume o sentimento mais amplo do que estava a acontecer na Faixa de Gaza”. Para o júri, citado no comunicado de imprensa que acompanha o palmarés — de novo sem fotógrafos portugueses —, é a composição da imagem, “cuidadosa e e respeitosa”, protegendo o rosto da tia enlutada, que justifica em parte o prémio. Concentra, num “vislumbre literal e metafórico", a dimensão "inimaginável” da perda.
Segundo a própria agência noticiosa que publicou a imagem agora premiada, Mulher Palestiniana Abraça o Cadáver da Sua Sobrinha evoca o carácter dolorosamente intemporal da fotografia. “É uma imagem com eco, tão antiga quanto a história humana.” Foi captada na morgue do hospital Nasser a 17 de Outubro, entre várias pessoas que procuravam os seus parentes desaparecidos. Noutra fotografia da mesma série, é possível ver o rosto de Inas Abu Maamar. “As pessoas estavam confusas, a correr de um lado para o outro, ansiosas por saber do destino dos seus entes queridos, e esta mulher chamou-me a atenção quando abraçava o corpo da menina e se recusava a largá-la.”
No site da Reuters há também imagens de Saly, ainda viva, numa típica fotografia de smarthphone de uma criança a fazer o “V” com os dedos de uma mão — o símbolo da vitória, mas também, há décadas, um símbolo de paz.
Outras histórias do ano
Como tem sido seu apanágio, a World Press Photo distribuiu o palmarés desta edição por vários continentes. O Prémio de História Fotográfica do Ano foi para Lee-Ann Olwage, da África do Sul, num trabalho para a revista GEO. Duas gerações abotoam os casacos prontas para sair, saem para a rua, relaxam numa cama. A aparente normalidade esconde o estigma que marca quem sofre de demência em Madagáscar. Valim-babena retrata “Dada Paul” e a sua neta Odliatemix a caminho da igreja com a filha de Paul, Fara. Olwage há muito se dedica ao tema da demência na sua fotografia.
“Esta história aborda uma questão de saúde universal através da lente da família e dos cuidados. A selecção de imagens é composta de forma calorosa e terna, recordando a quem a vê o amor e a proximidade necessários numa época de guerra e agressão em todo o mundo”, decreta o júri.
Por falar em dedicação a uma história, o Prémio para Projecto a Longo Prazo foi para o venezuelano Alejandro Cegarra, que publicou no The New York Times e na Bloomberg uma série de imagens a preto e branco sobre os efeitos da política de imigração mexicana que visa os seus vizinhos venezuelanos e que mudou a vida junto à fronteira. A família de Alejandro Cegarra fez exactamente o mesmo caminho, da Venezuela para o México, em 2017; desde 2018, o fotógrafo dedica-se a mostrar como o estatuto destas pessoas enquanto requerentes de asilo se alterou.
A invasão russa da Ucrânia não podia faltar nesta edição dos prémios e a World Press Photo destaca-a no Prémio de Formato Livre, atribuído a War is Personal, de Julia Kochetova, ucraniana que associa a fotografia à ilustração, à música, a sons e a texto, este captado no ecrã de um smartphone e em trocas de mensagens. Está tudo num site criado pela fotógrafa: um documentário-diário que aproxima as rotinas noticiosas sobre a guerra do que é realmente o quotidiano de um país em guerra.
“Cada um destes fotógrafos vencedores está íntima e pessoalmente familiarizado com os seus temas. Isso ajuda-os a trazer uma compreensão mais profunda a todos nós, o que esperamos que conduza à empatia e à compaixão. Estou grata pela sua dedicação, coragem, profissionalismo e competência”, disse a directora executiva da World Press Photo, Joumana El Zein Khoury.
“O trabalho dos fotojornalistas e dos fotógrafos documentais em todo o mundo é muitas vezes efectuado com grande risco. No ano passado, o número de mortos em Gaza fez com que o número de jornalistas mortos atingisse um valor quase recorde. É importante reconhecer o trauma que sofreram para mostrar ao mundo o impacto humanitário da guerra”, assinala.
Foram submetidas ao concurso deste ano 61.062 imagens de 3851 fotógrafos de 130 países. O processo foi o costumeiro: um júri regional por cada zona do planeta (seis) e depois um júri global para decidir a partir dos finalistas de cada região. Os prémios regionais foram anunciados a 3 de Abril.
A presidente do júri dos prémios globais, Fiona Shields, editora de fotografia do diário britânico The Guardian, destaca o poder de todas as imagens premiadas de “transmitir um momento específico que ao mesmo tempo vai para além do seu tema e do seu tempo”. Frisando também o risco que correm os fotojornalistas em todo o mundo, explicou que este ano a World Press Photo quis “garantir” que esses actos de coragem e profissionalismo são aplaudidos.
Há 24 vencedores regionais (e seis menções honrosas) e, como é tradição, as imagens serão mostradas mundo fora na exposição itinerante da World Press Photo, que normalmente passa por Portugal (ainda sem data nem local). No total, saíram premiados desta edição 33 fotógrafos, por 32 projectos. Uma nota muito de 2024: “A World Press Photo proíbe o uso de imagens [geradas por] Inteligência Artificial.”