50 anos da revolução que “não foi feita para as reivindicações de prostitutas e homossexuais”

Foram várias as conquistas que ampliaram liberdades democráticas, direitos sociais e civis. Mas e o que ficou por cumprir?

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O título provocatório deste artigo remete-nos para aquele que fora o primeiro manifesto político LGBTQIA+ escrito em contexto de democracia. Liberdade para as minorias sexuais, do Movimento de Acção Homossexual Revolucionária (MAHR), publicado a 13 de Maio desse mesmo ano, rapidamente mostrou gerar o descontentamento por parte da direita conservadora da época. O General Galvão de Melo, da Junta de Salvação Nacional, tornaria pública a sua opinião sobre o manifesto: a Revolução não tinha sido feita para “as reivindicações de prostitutas e homossexuais".

A repressão da homossexualidade mostrou prolongar-se até à sua despenalização no Código Penal Português em 1982. Daí adiante, no espaço de 40 anos, Portugal passaria de um país que criminalizava a homossexualidade para ser considerado o país mais “gay-friendly do mundo”, segundo a Spartacus Gay Travel Índex 2019. Também, segundo o Inquérito LGBTQIA+ da Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia de 2019, o país aparecia como um dos países com menor número de ataques motivados por orientação sexual ou identidade de género – relatórios recentes da ILGA Europa dão conta do reverter deste cenário após a pandemia de covid-19.

Apesar dos importantes avanços jurídico-legais, a implementação de legislação e políticas de igualdade mostram permanecer desiguais. Para muitas pessoas LGBTQIA+ o local de trabalho continua a ser um ambiente desafiante e/hostil no que toca ao respeito das suas identidades (sobretudo quando falamos de pessoas trans); nas escolas continuam a ser relatados episódios de assédio e violência com base na identidade e/ou expressão de género e orientação sexual dos jovens; para cidadãs/os LGBTQIA+ idosos o estigma e a discriminação enfrentados ao longo da vida mostram afectar os recursos materiais e acesso a cuidados de saúde adequados durante a reforma.

Existe uma desigualdade que é estrutural e que empurra tudo o que é “dissidente” da norma para as margens. Quando olhamos para as pessoas trabalhadoras do sexo percebemos o que ficou por cumprir da revolução de Abril. Do direito de decisão individual e de controlo do próprio corpo à possibilidade de associativismo e partilha de espaços mais seguros de trabalho, os direitos das pessoas trabalhadoras do sexo continuam a ser invisíveis, silenciados, marginalizados perante o paternalismo da lei que lhes nega direitos laborais inerentes a qualquer profissão e do puritanismo de uma moral cristã conservadora que numa perspectiva de “salvar” as mulheres continua a condenar a autodeterminação individual em defesa do ideal do “sagrado feminino”.

Cinco décadas após a revolução de Abril, continuamos a perceber o desencanto de quem vê os seus direitos cívicos e laborais serem adiados pela "moral dos bons costumes". Do direito à saúde sexual e reprodutiva à garantia da autodeterminação individual de mulheres, pessoas trans, não binárias, trabalhadores sexuais, continuam a ser sujeitas a formas de violência social e institucional assombradas pelo conservadorismo do tempo da outra senhora.

Cinco décadas após a revolução de Abril vemos novamente a tentativa de soerguer um passado onde cabia à mulher o dever de “parir” e de ser dona de casa em “defesa da família, da raça e da alta moralidade do Estado”. Um passado que criminalizava, entre tantas outras coisas, a homossexualidade e a prostituição, com penas que iam desde internamento a trabalho forçado por período indeterminado.

Vivemos num tempo em que mais do que criminalizar a discriminação precisamos de pensar a raiz do conservadorismo, lembrar a história e resgatar do silêncio quem por desafiar o poder e moral instituídos foi perpetuamente mergulhado numa maré de violência e clandestinidade. É com estas experiências que podemos/devemos aprender de forma a não repetir os erros do passado.

A Revolução foi, é e será também para todas as existências que, 50 anos depois, continuam no limbo da democracia e da justiça social. Hoje, urge construir novos projectos colectivos que combatam as estruturais formas de discriminação, violência e silenciamento. Afinal, a liberdade e a democracia são projectos indissociáveis e também constantes.

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