Uma viagem até à escuridão dos gulags de Estaline
Em 1991, Barry Lewis visitou a Sibéria e fotografou “a escuridão dos campos prisionais de Estaline”. Em 2022, mergulhou no vasto arquivo para dar corpo ao fotolivro Gulag, editado agora.
Há 33 anos, o britânico Barry Lewis, um “dinossauro” do fotojornalismo mundial, embarcou numa singular viagem à região gelada da Sibéria, de onde trouxe o retrato das prisões e campos de trabalhos forçados onde se estima que milhões de “inimigos” do regime de Josef Estaline terão perdido a vida. O livro Gulag: A Photographic Journey Into the Darkness of Stalin’s Siberian Prison Camps, que editou pela Fistfull of Books no início de 2024, contém fotografias de uma era que o britânico considera “estar a ressurgir” sob o actual comando de Vladimir Putin. Em entrevista ao P3, a partir de Londres, o fotojornalista conta que a invasão russa da Ucrânia foi o motivo pelo qual decidiu mergulhar no arquivo pessoal. “À medida que o comportamento de Putin se tornava mais e mais despótico, mais sentido fazia a publicação do livro”, observa.
Em 1991, pouco antes da queda da União Soviética, o país vivia, pela mão de Mikhail Gorbatchov, um período de abertura ao exterior que ficou conhecido por glasnost. “As pessoas estavam desejosas de partilhar as suas experiências com quem vinha de fora, tive sorte de beneficiar dessa abertura”, recorda Lewis. Antes disso, teria sido impossível aceder aos locais que documentou – não apenas porque seriam, por norma, de acesso interdito à imprensa estrangeira, mas também porque, ainda na década de 1980, na sequência da publicação de várias reportagens críticas do regime soviético na imprensa ocidental, em jornais como o Observer, The Guardian ou The Sunday Times, Barry Lewis foi banido do país. O seu estatuto de persona non grata não esteve desligado do facto de ter o nome associado ao de um colega jornalista, com quem trabalhou, que foi “detido por espionagem”.
A viagem de Barry pela Sibéria soviética de 1991 teve início no Porto de Magadan, em Kolyma, um centro de trânsito de prisioneiros e materiais destinados aos campos de trabalho forçado do regime – que entre 1920 e meados dos anos 1950 se estima terem recebido entre 10 milhões e 18 milhões de presos – o número exacto não é conhecido. A rede de gulags (acrónimo de Glavnoe Upravlenie Lagerei, que significava algo como Centro de Administração dos Campos de Correcção) era composta por muitas centenas de campos espalhados por todo o território soviético e albergava todo o tipo de “criminosos” – muitos deles, considerados presos políticos, eram encarcerados sem terem tido direito a um julgamento.
Foi na cidade portuária de Magadan que, com a ajuda da organização de preservação de memória dos sobreviventes da repressão soviética Memorial, extinta em 2021 pelo Supremo Tribunal de Justiça russo, que a classificou como “agente estrangeiro”, que Barry Lewis se cruzou com um dos sobreviventes dos gulags. O então octogenário Asir Sandler foi preso aos 30 anos, em 1941, e condenado à morte por “traição”, mais propriamente por ter um livro de poemas proibido pelo regime. “Era um livro de poemas satíricos que criticava Estaline”, elucida o britânico. No momento em que foi preso, contou Sandler a Lewis, pesava 70 quilos; “três meses depois, contou que pesava 42”. “Todos os intelectuais eram enviados para os campos”, contou-lhe o ex-condenado. Foi lá, conta, que aprendeu a exercer medicina. “Era a melhor universidade do mundo.”
No dia que se seguiu ao primeiro encontro, Lewis levou Sandler até à prisão onde, apesar de libertado prematuramente, permaneceu 11 anos. Retratou-o no interior da antiga cela, onde estavam “abandonados” muitos documentos. “Ao remexermos na papelada, encontrámos o seu ficheiro. Foi um momento muito comovente.” Sandler já não guarda tristeza desses tempos, “apenas curiosidade”, conta Lewis.
O horror a cores
A viagem de Barry Lewis seguiu pela “Estrada dos Ossos”, a auto-estrada de Kolyma, que tem a extensão de 2000 quilómetros e liga Magadan a Nizhny Bestyakh, em Yakutsks, no Leste da Sibéria. A estrada começou a ser construída no final da década de 1920 e atravessa as extensas florestas siberianas.
“Centenas de milhares de prisioneiros construíram essa estrada”, explica Lewis. “E muitos morreram ao fazê-lo. Alguns foram mortos por não trabalharem o que as autoridades consideravam ser ‘suficiente’ e outros simplesmente não resistiam às condições brutais em que viviam, na região onde as temperaturas chegavam aos 50 graus negativos. Morriam de doença, de subnutrição ou hipotermia.”
Ao longo da estrada, Lewis visitou as pequenas povoações que foram construídas em torno da mineração, uma das principais fontes de riqueza do regime soviético. “Muita da população dessas vilas é descendente dos prisioneiros, que foram impedidos de abandonar a região mesmo após o cumprimento da pena”, escreve Lewis numa das páginas do livro, onde as pequenas cidades e os seus habitantes surgem em imagens de aparência cinematográfica.
“Estamos acostumados a ver estas histórias fotografadas a preto e branco, e é interessante vê-las a cores, porque assumem um aspecto quase cinematográfico”, comenta Lewis. “Não estamos acostumados a ver o horror a cores.” Ter fotografado com rolos Kodachrome foi uma “sorte” calculada. “As cores destes filmes duram para sempre. Quando tornei a digitalizá-los, recentemente, estavam como novos. Os vermelhos, que são os primeiros a desaparecer com o tempo, estavam intactos – e o vermelho era bastante importante nesta história, tratando-se da URSS.”
Durante a viagem, Lewis conseguiu, “subornando o KGB”, entrar no Campo AV261/4, em Uptar, um dos campos de trabalho forçado onde, nos anos 1960, os prisioneiros políticos foram substituídos por criminosos ditos “normais”. Hoje, sendo uma prisão como tantas outras, situada num local isolado e cercada por arame farpado, “os prisioneiros parecem fazer exactamente o mesmo que os antigos prisioneiros: trabalham em troca de tostões em condições brutais”. Quando a visitou, os homens estavam a manusear cimento no exterior, com 30º C graus negativos. No interior, fotografou o quotidiano da prisão, contactou com os prisioneiros, o interior das celas e dos espaços comuns, e até interrompeu uma visita conjugal. Foi numa prisão não muito diferente desta, refere, que Alexei Navalny esteve preso e perdeu a vida.
O destino final de Barry, e o mais difícil de aceder, era o campo de trabalho Butugychag, onde, até 1955, os prisioneiros eram forçados a extrair ouro e urânio das minas. O local “secreto” – que não surge na lista dos campos de trabalho abandonados – “foi uma câmara de horrores rodeada de campas rasas”, descreve Lewis. Os níveis de radiação detectados nas pedras que formavam as paredes das celas forçaram o fotógrafo a abandonar o local passadas duas horas, “em nome da própria segurança”. Testemunhas afirmam, nota Lewis, que existia, no interior de Butugychag, um centro médico onde eram conduzidas experiências com radiação que usavam os prisioneiros como cobaias.
A maioria dos prisioneiros não morria nos campos de trabalho forçado, nota o britânico. “Quando ficavam muito doentes, eram libertados para que morressem fora dos campos. Por esse motivo, o número de vítimas mortais deste sistema é muito impreciso. A CIA afirma que estão entre os 20 e os 60 milhões, mas exagera. As autoridades soviéticas apontam para um ou dois milhões, mas subvalorizam.” A verdade estará algures no meio?
Os sobreviventes com quem teve contacto, entre a Sibéria e Moscovo, partilharam histórias singulares. “Ela, Rika, era estalinista e inspectora num dos campos. Ele era prisioneiro, escritor. Apaixonaram-se e casaram, secretamente.” Quando fotografou o casal, na capital russa, Rika já não se encontrava bem de saúde e “morreu um ou dois meses depois”. Lev escreveu um livro de memórias do seu tempo de cárcere, que intitulou True Stories, publicado em 1988, e que dedicou a todos os que estiveram presos e que não sobreviveram. “Tinha uma dívida moral para com eles, que foram esquecidos”, contou a Lewis.