Pedido “ininteligível”? Tribunal rejeita processo por inacção climática, associações recorrem para o Supremo

A juíza decidiu pela “ineptidão da petição inicial por ininteligibilidade do pedido”, caracterizando o conteúdo como “indeterminado e vago”. Último Recurso, Quercus e Sciaena recorrem para o Supremo.

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Tribunal Cível de Lisboa rejeitou acção popular por incumprimento da Lei de Bases do Clima. Associações vão recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça DR
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O Tribunal Cível de Lisboa rejeitou a acção popular interposta pelas associações Último Recurso, Quercus e Sciaena contra o Estado português por falhar a aplicação da Lei de Bases do Clima. As associações planeiam recorrer para o Supremo.

De acordo com a decisão de quinta-feira, a juíza decidiu rejeitar a acção popular por considerar que devia "obedecer a determinadas características", nomeadamente a exigência de que seja deduzido de "forma clara e inteligível, e seja preciso e determinado".

"Só um pedido cujo alcance possa ser compreendido pelo juiz e pelo réu é passível de sustentar um processo em que se pretende uma decisão judicial definidora de um conflito de interesses, não se admitindo a formulação de pedidos ininteligíveis, ambíguos, vagos ou obscuros", entendeu a magistrada.

As três associações alegam na acção popular que o Estado falhou na implementação de medidas previstas na Lei de Bases do Clima, como a elaboração de orçamentos de carbono ou a criação de um portal de acção climática, assim como a aplicação eficaz do Plano Nacional de Energia e Clima e a criação de planos sectoriais de mitigação — "uma negligência que é especialmente condenável na sequência de temperaturas extremas e outros danos sem precedentes ocorridos no país", afirmam as ONG em comunicado.

Pedido "ininteligível"?

A juíza sustenta que "os pedidos deduzidos pelas autoras apresentam um conteúdo indeterminado e vago, deixando ao tribunal o ónus de enumerar quais as medidas legislativas concretas que deveriam ser alvo de atenção pelo poder legiferante", razão pela qual decidiu pela "ineptidão da petição inicial por ininteligibilidade do pedido".

“A sentença indefere liminarmente a acção porque o pedido formulado seria ininteligível, o que é avaliado em dois parágrafos. Assim sendo, é difícil de aceitar que o tribunal tenha demorado quatro meses a decidir”, diz o advogado Ricardo Sá Fernandes, responsável pelo processo das três ONG, em comunicado. A sentença, afirma, “revela uma insensibilidade jurídica e uma precipitação que chocam, em claro contraste, com as recentes decisões do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos”.

Na semana passada, numa decisão inédita, o Tribunal Europeu dod Direitos Humanos condenou a Suíça por violação de direitos humanos devido a insuficiência e incumprimento dos compromissos assumidos em matéria de acção climática. Além das implicações para outros Estados, esta decisão deixa também um guia aos tribunais sobre como integrar a ciência climática nas suas decisões: "Essa interpretação da Convenção Europeia é feita também com o Acordo de Paris, com a ciência e os relatórios do IPCC, com o que tem sido publicado de mais recente em termos de ciência climática", explicou Maria Antonia Tigre, do Sabin Center da Universidade de Columbia, ao Azul.

"Uma omissão perante a crise climática"

Em declarações à Lusa, a presidente da Associação Último Recurso, Mariana Gomes, considerou que a decisão "constitui, na mesma linha da falta de implementação da Lei de Bases do Clima, uma omissão perante a crise climática". Mariana Gomes acrescentou que já deveria haver "juízes competentes o suficiente para avaliar estas questões", em vez de rejeitá-las com argumentos "que não se aplicam": "Nem sequer conseguimos perceber quais são os fundamentos desta rejeição liminar dos pedidos."

Após mais de quatro meses sem resposta sobre a acção popular, as associações apresentaram uma queixa no Conselho Superior de Magistratura contra a juíza do Tribunal Cível de Lisboa. A decisão sobre o processo foi comunicada poucos dias depois.

"Não só houve uma tentativa de retenção da acção e impedir-nos que efectivamente acedêssemos à justiça durante os últimos meses em que a acção esteve parada, como também a própria decisão demonstra uma desconsideração temática e aquilo que temos vindo a alegar: os próprios tribunais não foram criados, nem foram pensados, para combater uma crise deste tamanho", completou a estudante de Direito.

A presidente da associação recordou que o próprio Governo "já declarou que a Lei de Bases do Clima está em incumprimento e a juíza não foi capaz de referir isso" na decisão. No Programa do XXIV Governo Constitucional, o executivo de Luís Montenegro assume que anos depois da aprovação da Lei de Bases do Clima, "muito do disposto ficou por cumprir".

Recurso para o Supremo

"A única solução que temos, e fazendo jus ao nome da associação, indo até ao último recurso, o próximo passo que se segue é juntar o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça e estamos também dispostos a ir ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos [TEDH] e aí, mesmo que o Supremo rejeite, acreditamos que o TEDH não o irá fazer, porque a acção das 'avós pelo clima' criou um precedente tão grande e é tão similar à nossa que será quase impossível", completa Mariana Gomes.

A acção popular foi interposta contra o Estado por "omissão de acção gravíssima" por parte do Governo no combate à crise climática. As organizações Quercus e Sciaena formalizaram o apoio ao assinarem conjuntamente esta acção civil.

A Último Recurso, associação fundada em Dezembro de 2022, relacionou pela primeira vez o Direito directamente com as alterações climáticas, com vista a obter uma sentença que reforce o compromisso do Estado nesta matéria, nomeadamente cumprindo o disposto na Lei de Bases do Clima e o compromisso português com o Acordo de Paris para manter o aumento da temperatura abaixo dos dois graus Celsius.

Em Novembro de 2023, recordou Mariana Gomes, o relatório do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC) veio dizer que as metas nacionais de redução de gases de efeito de estufa (entre 45% e 55% face a 2005) "são insuficientes".