Quando a directora da Universidade de Nevada, nos Estados Unidos, soube que Mariana Gomes estava a ser processada pelo Estado português, levantou-se e cumprimentou-a: “Parabéns! É assim que sei que és uma verdadeira activista.”
O activismo foi a consequência lógica da “indignação” que talvez tenha sentido pela primeira vez aos “dez ou 11 anos”, quando descobriu a prateleira dos livros “que falavam das mulheres do Sul global e do Médio Oriente” na biblioteca da escola, em Guimarães. Foi o feminismo que lhe plantou as primeiras inquietações, mas foi a crise climática que a fez começar activamente a lutar por uma causa: em Março de 2019, organizou a primeira Greve Climática Estudantil (GCE) em Guimarães, para onde se mudou depois de sair do Porto.
Foi “o primeiro acto simbólico de activismo”, e viria a trilhar um caminho que, aos 21 anos, é cada vez mais nítido. Quando mudou de cidade para estudar na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, já havia qualquer coisa que a puxava para “os espaços políticos, as conferências e os debates”. Juntou-se ao núcleo da Greve Climática Estudantil de Lisboa, mas acredita que foi quando entrou na Climáximo que se tornou verdadeiramente activista.
Entre palestras, conferências, reuniões, Mariana encarregou-se também de “montar a equipa legal” da Climáximo. Um ensaio para o que faria nascer em Abril deste ano: a Último Recurso, uma associação que presta apoio jurídico a activistas. “Eu era a única pessoa de Direito na GCE e na Climáximo e, à medida que o conflito escalou, começou a ser muito frustrante não conseguir dar uma resposta eficaz a todas as pessoas. Havia alguns advogados a colaborar, mas não existia propriamente uma estrutura garante de apoio aos activistas, e eu pensei em criá-la”, conta.
Assim, “a Último Recurso monta uma equipa legal composta por juristas e advogados”, refere. “Há também juristas e advogados a construir manuais legais que vão ser dados aos activistas para eles terem consciência da lei, que fazem a mediação com a polícia, que vão à esquadra caso haja detenções, fazem a representação dos activistas, vão a tribunal com eles, dão briefing legal e definem a estratégia processual”, enumera. Desde Julho deste ano, mais de 300 pessoas contaram com o apoio prestado pelos cerca de 20 voluntários da associação.
A ideia era ser “uma estrutura que dá resiliência ao movimento”: “Se o activista é detido e tem apoio jurídico, maior é a probabilidade de sair sem registo criminal e poder continuar a fazer acções”, explica. Mas, recentemente, passou a ter uma acção mais activa, depois de Mariana ter percebido que eram precisamente o Estado português, a Galp e a Navigator quem menos cumpria as normas de redução de gases com efeito de estufa — decidiu processá-los.
O Direito como forma de protestar dentro do sistema
“Já lançámos a primeira acção judicial [contra o Estado]. [O processo] assenta no direito constitucional a um ambiente ecologicamente equilibrado. Entendemos que o Estado português, ao assinar o Acordo de Paris, vinculou-se a definir metas e políticas públicas que limitassem a temperatura do planeta abaixo de dois graus em comparação com a era pré-industrial. Em Dezembro do ano passado, Portugal aprovou a Lei de Bases do Clima e até hoje nada foi feito com base nessa lei”, explicita.
Por outro lado, também ela foi constituída arguida, depois de, em Maio de 2021, ter sido promotora da acção “Em Chamas”, que levou activistas a bloquearem a Rotunda do Relógio, em Lisboa, contra a poluição causada pelos aviões, e que acabou com a detenção de 26 pessoas. “Estou, neste momento, a ser acusada pelo Estado português de desobediência qualificada, obstrução à via pública, de pôr em causa a integridade física dos manifestantes e dos automobilistas e de uma série de questões que me colocam numa posição ainda mais difícil do que a dos outros activistas que foram detidos nesse dia”, afiança. Por isso mesmo, teve de avisar as autoridades quando se mudou para o Brasil, onde está actualmente em intercâmbio.
“Eu estava disposta a correr esse risco”, garante. “Sendo estudante de Direito, sempre tive noção de que o Direito pode ser utilizado contra o sistema, mas na maior parte das vezes é usado para oprimir aqueles que não são as elites.” Diz-se confiante de que não incorreu em nenhum crime, mas confessa estar preocupada com “aquilo a que se tem assistido em Portugal nos últimos meses”. O exemplo que dá é o de Francisco Pedro — arguido depois de interromper um discurso de António Costa —, que foi absolvido, decisão da qual o Ministério Público recorreu; ou das estudantes da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa que foram a julgamento depois de ocuparem as instalações. “Parece que se alguém é activista tem de ser condenado ou detido.”
Mas isso não deixa de a fazer “insistir no Direito” como ferramenta para alterar o statu quo. Ainda que moroso numa crise que é urgente, “o Direito tem uma particularidade que as restantes formas de acção não têm: é coercivo”. “Ao contrário de uma manifestação, de uma acção de desobediência civil ou qualquer outra que um colectivo possa fazer, a sentença judicial tem um efeito coercivo, portanto, se o Estado ou empresa não cumprir essa sentença, há uma sanção que se aplica. E estamos a falar de entidades institucionais que se regulam dentro do sistema, que vão querer cumprir a sentença, sob pena de incorrerem em mais ilegalidades.”
Mais ainda numa altura em que as acções de desobediência civil estão com grande fôlego a nível mundial — desde activistas que atiram sopa a pinturas a ocupações e bloqueios de estradas — e, consequentemente, têm gerado alguma antipatia, Mariana acredita que a mudança através do Direito é mais consensual (o que não quer dizer que discorde da desobediência civil pacífica, “que tantos direitos conquistou”). “Uma acção judicial é mais unânime para a população em geral do que bloquear uma rotunda, ainda que ambas estejam a transmitir a mesma mensagem. É diferente um juiz proferir uma sentença e dizer que o Estado português tem efectivamente de aumentar as metas de redução de gases com efeito de estufa”, refere. “Desta forma, enquanto a maioria das acções em Portugal tem sido contra o sistema, estamos a actuar dentro do sistema e isso ajuda a criar abertura para o diálogo.”
Confortável com o rótulo de advogada-activista, é este o caminho que acredita fazer sentido seguir. “O meu objectivo não é subir na escada corporativa enquanto estaria a defender os grandes poluidores. Posso olhar para isto como a advogada-activista que será malvista por corporações e não irá conseguir arranjar emprego; ou como a advogada-activista que age sem frustrar os seus valores.”
Notícia alterada às 15h45 de 7 de Dezembro de 2022: foi corrigida a entrada do texto. Mariana Gomes promoveu uma manifestação que foi comunicada e acabou com a detenção de alguns activistas que não acataram ordens da polícia, e não uma acção de desobediência civil, como se lia anteriormente.