Temos de reverter a extinção da experiência natural

Apesar da crescente consciencialização ambiental da sociedade, a degradação dos ecossistemas naturais está a acelerar. Esta contradição é, em boa parte, explicada pela extinção da experiência natural.

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Megafone P3: Temos de reverter a extinção da experiência natural Matilde Fieschi
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O mundo natural está a mudar, e isto já não é novidade para ninguém. Todos já ouvimos falar de inúmeros problemas ambientais, desde temperaturas médias a aumentar, ilhas de plástico num oceano acidificado, até colónias de pinguins a serem engolidas por glaciares a derreter. Na comunidade científica o consenso é já alargado, há já muitos anos: a intensificação das atividades humanas está a levar a uma degradação acentuada dos ecossistemas, com consequências para a capacidade destes para suportarem estas mesmas atividades humanas.

Apesar deste aumento do conhecimento e consciencialização, a desconexão entre o cidadão comum e o mundo natural é cada vez maior. Pela primeira vez na história, mais de metade da população humana vive em centros urbanos, prevendo-se um aumento para perto dos 70% até 2050. Outro tipo de estatísticas é também revelador. Segundo o relatório Digital 2023 para Portugal (datareportal.com), acedemos à Internet entre sete a oito horas por dia, e vemos televisão durante uma média de três horas. Entre obrigações pessoais e profissionais, períodos de descanso e lazer, há tempo para apreciar o pisco que acabou de cantar no arbusto junto ao nosso prédio? Aliás, há um pisco no jardim? Duplo aliás, o que é um pisco?

A “extinção da experiência natural”, conceito cunhado pelo biólogo americano Robert M. Pyle, é um fenómeno real. Tal como as espécies selvagens enfrentam um risco acrescido de extinção, também as nossas interações com o meio natural tornam-se mais raras em sociedades cada vez mais urbanizadas e tecnocêntricas.

Citando Pyle, “quem não conhece, não quer saber”. Os efeitos desta alienação nas nossas atitudes perante a conservação da natureza são fáceis de intuir, e demonstrados empiricamente por múltiplos estudos. Estas preocupações vão além da saúde dos ecossistemas. A falta de exposição regular a ambientes naturais está associada a um aumento de perturbações do foro psicológico incluindo depressão, ansiedade e distúrbios de sono. Outros efeitos comuns incluem défices na resposta imunitária, obesidade, doenças cardiovasculares e hipertensão.

É urgente, pelo nosso futuro coletivo, reverter a extinção da experiência natural. Precisamos de aumentar o conhecimento e apreciação do meio natural envolvente, quer pela adaptação de programas escolares quer pela dinamização de iniciativas de educação científica e ambiental para toda a população. Precisamos também de meios “passivos”, que garantam o aumento da exposição a elementos naturais. Face à concentração das pessoas em cidades, é preciso trazer a natureza para os parques, ruas e avenidas, apostando em soluções de base natural como uma componente essencial do planeamento e ordenamento das cidades do futuro.

A natureza não é um local onde se passam férias. A função recreativa das áreas verdes e naturais é essencial e não pode ser menosprezada (sem falar, obviamente, da sua intrínseca função de conservação), mas a apreciação da nossa relação com a natureza precisa de ir além disto. Enquanto for preciso um esforço ativo por parte das pessoas para entrar em contacto com a natureza, também não podemos esperar que os cidadãos (justificadamente) menos sensibilizados tenham motivação para contrariar a extinção da experiência, com as várias consequências negativas associadas para o indivíduo e para a sociedade.

As sociedades atuais enfrentam problemas multifacetados, por isso seria ingénuo assumir que soluções simples bastariam para reverter mais este problema complexo. Em qualquer caso, é preciso haver um reconhecimento coletivo de que o nosso afastamento da natureza é um problema concreto, com consequências concretas, para o desenvolvimento e bem-estar pessoal, para o futuro do nosso património natural, e para o nosso futuro enquanto sociedade. Este desafio é reconhecido por cientistas e por ativistas, mas é uma miragem para uma sociedade em que o digital e a tecnologia são sinónimo de desenvolvimento e progresso, esquecendo a conservação do património natural que representa as nossas raízes como uma parte igualmente importante do progresso.

De pouco vale falarmos sobre conservação da natureza sem que as pessoas saibam o que é que, afinal de contas, é suposto proteger.

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