Morreu o ensaísta, poeta e crítico cultural Eugénio Lisboa

Ensaísta, crítico literário e o maior especialista português em José Régio morreu em Lisboa aos 93 anos.

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Eugénio Lisboa Observatório da Língua Portuguesa
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O poeta Eugénio Lisboa morreu na manhã desta terça-feira em Lisboa aos 93 anos. O seu óbito foi confirmado ao PÚBLICO pelo seu filho, o jornalista e crítico musical João Lisboa, que detalhou que o ensaísta e crítico literário, que era também um dos maiores especialistas portugueses em José Régio, morreu de doença oncológica no Hospital Curry Cabral, em Lisboa. O velório decorrerá na sexta-feira, 12 de Abril, a partir das 10h, no Centro Funerário de Cascais, em Alcabideche, com cremação às 14h.

Eugénio Lisboa nasceu a 25 de Maio de 1930 em Moçambique (na antiga Lourenço Marques, hoje Maputo) e tem uma vasta bibliografia. Era conhecido “por praticar a crónica como autêntico crítico da cultura”, como salientava em 2001 António Brás no PÚBLICO. Escrevia na altura a propósito do seu segundo livro de poesia, O Ilimitável Oceano, que secundava A Matéria Intensa, de 1999. “A poesia de Eugénio Lisboa, seu violino de Ingres, surpreende-nos, desde logo, pelo seu assumido anacronismo”, elogiava-se em 2001, aproximando-se mesmo a forma como escrevia à de Jorge Luís Borges. Na sua poesia, “o destino humano não passa de palavra vã no tempo que só no poema logra uma pátria precária, o resgate provisório do olvido”.

Sobre A Matéria Intensa, o poeta David Mourão-Ferreira assinalou os "inesperados acentos lúdicos" da sua voz, "a um tempo áspera e calorosa, austera e fremente", como consta no Dicionário Cronológico de Autores Portugueses.

Eugénio Lisboa já se tinha estabelecido como grande especialista na obra de José Régio, escritor português incontornável de quem foi amigo e sobre quem publicou José Régio. Antologia, Nota Bibliográfica e Estudo (1957), ainda em Maputo. Mais tarde, dirigiu a colecção Obras Escolhidas de José Régio (ed. Círculo de Leitores). Voltaria ao autor com José Régio: a Obra e o Homem, na editora Opera Omnia, onde lançou outros nove livros, nomeadamente as suas memórias e diários. "Além de seu amigo, era um dos seus maiores defensores", recorda agora ao PÚBLICO o editor da Opera Omnia, José Manuel Costa, sobre o respeito de Lisboa por Régio.

Homem "de muito fácil trato, muito culto, tinha sempre uma citação para qualquer situação", comenta o editor. "Era bem-humorado, gostava de contar histórias e anedotas, até relacionadas com escritores, até com José Régio — que tinha fama de empertigado." José Manuel Costa começou a trabalhar com o poeta e ensaísta quando a Universidade de Aveiro lhe dedicou um livro de homenagem, nos seus 80 anos. Nele se lê que Lisboa era um "leitor omnívoro e possuidor de vastíssima cultura. Eugénio lê furiosamente. Lê de tudo porque tudo se dispõe a aprender". São palavras de Otília Martins, professora da Universidade de Aveiro, e Onésimo Teotónio de Almeida, um dos grandes promotores do livro de tributo intitulado Eugénio Lisboa: Vário, Intrépido e Fecundo: Uma Homenagem (2011).

Mais tarde, retoma José Manuel Costa, "editámos as memórias dele", recorda ao PÚBLICO. "Estavam previstos dois volumes — acabaram por sair seis ou sete porque ele tinha uma vivência extraordinária. Viveu em África, França, Suécia, Inglaterra, era um homem do mundo. O que mais apreciava nele era a vertente ensaística, que foi aliás o meu primeiro contacto com ele, como leitor na minha adolescência, e era um memorialista extraordinário. O memorialismo é uma área que ele achava ser pouco valorizada."

Eugénio Lisboa, que foi também professor universitário (nas universidades da antiga Lourenço Marques, de Pretória, de Estocolmo e de Aveiro), tinha, nas palavras de Pedro Mexia noutro texto no PÚBLICO já em 2010, “uma mentalidade ostensivamente não-académica, e a sua tendência polémica tem como alvo frequente a universidade portuguesa, e o cânone que esta terá estabelecido”. Mexia escrevia na altura sobre Indícios de Oiro, primeiro de dois volumes que compilam décadas da intervenção crítica de Eugénio Lisboa e que assinalavam os seus 80 anos. "Era um homem que, não tendo vindo do meio académico, era um profundo conhecedor da literatura portuguesa, mas não só, com formação no mundo literário anglo-saxónico e também francês. Era, por exemplo, um grande admirador de Henry de Montherlant, um autor que não tem muita visibilidade", detalha José Manuel Costa.

Talvez a sua obra mais marcante no campo do ensaio seja Crónica dos Anos da Peste (1973-1975), mas em plena pandemia publicaram-se Poemas em Tempo de Peste (Guerra & Paz, Setembro de 2020), em que Lisboa elenca cronologicamente os poemas que redigiu entre 31 de Março e 28 de Julho de 2020. “É como se através destes seus poemas nos debruçássemos sobre uma janela onde a vida agora mal passa”, comentou Nuno Pacheco neste jornal. Uma estrofe: “Lixe-se a melancolia,/ refúgio de quem não luta,/ e combata-se, de dia,/ o vírus filho da puta!”. Já neste mês de Abril foi publicado Soneto - Modo de Usar, também pela Guerra & Paz.

Extensa bibliografia

Eugénio Lisboa estudou Engenharia Electrotécnica no Instituto Superior Técnico, em Lisboa, e antes de regressar a Moçambique formou a sua importante amizade com José Régio. Em Moçambique, onde sempre esteve em plena actividade cultural, trabalhava ao mesmo tempo no sector petrolífero — o que o levou até França como gestor. Era membro da Academia das Ciências de Lisboa, na Classe de Letras e foi agraciado com os graus de Oficial da Ordem do Infante D. Henrique (1980), Comendador da Ordem do Mérito (1993) e Comendador da Antiga, Nobilíssima e Esclarecida Ordem Militar de Sant'Iago da Espada, do Mérito Científico, Literário e Artístico (2019). O ensaísta foi também conselheiro cultural na embaixada de Portugal em Londres entre 1978 e 1995. Foi aí que foi condecorado como tenente da Royal Victorian Order.

Da sua bibliografia, entre 24 livros de ensaio e crítica, sete de memórias e diários e ainda poesia, constam Acta Est Fabula, Epílogo (Opera Omnia, 2017), por exemplo, que dedicou a Maria Antonieta, sua companheira durante 57 anos e que morreu em 30 de Julho de 2016 — e à qual tinha já dedicado livros anteriores e dedicaria outros tomos posteriores. Durante a ditadura, usou vários pseudónimos, entre os quais John Land e Lapiro da Fonseca.

Na reabertura das livrarias após os primeiros meses constritivos da pandemia, editou Vamos Ler. Um Cânone para o Leitor Relutante, na colecção Livros Vermelhos da Guerra & Paz (2021), mas continuou por aí, como fez no blogue De Rerum Natura, a defender teses fortes, de que os romances são escritos para serem lidos e que o efeito Ulisses de James Joyce estragou a literatura portuguesa. Isso e o academismo. “Quando os docentes universitários começaram a tomar de assalto a grande imprensa não académica, para se tornarem os críticos sistemáticos com tribuna regular, e, depois, se tornaram também poetas e ficcionistas, armados até aos dentes com as teorias cada vez mais abundantes, ao seu dispor, teorias muitas vezes mal digeridas mas usadas como artilharia terrorista, o universo da ficção começou a perverter-se. Muitos não escreviam para serem lidos, mas para serem “vistos”, citados e comentados. Um romance tornava-se uma alínea pimpona do CV”, diagnosticou em 2022, ano em que publica o seu olhar sobre a invasão da Ucrânia, Poemas em Tempo de Guerra Suja, também pela Guerra & Paz.

Em seu nome existe o Prémio Imprensa Nacional/Eugénio Lisboa, criado em 2017 pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda numa parceria com o Camões — Centro Cultural Português em Maputo, que se compromete a editar a obra premiada e a atribuição de cinco mil euros ao vencedor que candidate trabalhos inéditos de prosa moçambicana. Eugénio Lisboa foi também presidente da Comissão Nacional da UNESCO entre 1996 e 1998. Era colunista da revista Ler, tendo colaborado com muitas outras publicações, nomeadamente o Jornal de Letras.

Foi um dos muitos coordenadores do Dicionário Cronológico de Autores Portugueses - Base de Dados de Autores Portugueses, da responsabilidade da Direcção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (DGLAB). Trata-se da maior base de dados biobibliográficos de autores portugueses disponível online, reunindo presentemente mais de 5000 autores, segundo a DGLAB.

É na entrada que lhe é dedicada que se lê uma apreciação holística do seu trabalho: "Espírito atento e sulfuroso, autor de um ensaísmo informado que não abdica da clareza e do fair play, Eugénio Lisboa tem sido, ao arrepio de modas e conveniências de vária ordem, um leitor empenhado e provocante de autores pouco amáveis (Henry de Montherlant, Régio, Reinaldo Ferreira, Sena, Rui Knopfli, para citar apenas os casos de dedicação 'militante'). Foi também, nos anos 60 e 70, um desassombrado crítico da visão oficiosa das 'literaturas africanas de expressão portuguesa'. No que se refere às obras e à personalidade de José Régio e Jorge de Sena, pode dizer-se hoje que não é possível estudar um nem outro destes autores sem atentar nos ensaios de Eugénio Lisboa".

O seu espólio literário foi doado à Biblioteca Nacional de Portugal. Entre a vasta colecção, estão cartas manuscritas que trocou com José Régio, Miguel Torga, Jorge de Sena, Vergílio Ferreira, Fernando Namora, Urbano Tavares Rodrigues, Mário Cesariny, Eugénio de Andrade, Alberto de Lacerda, António Osório, Eduardo Lourenço, Teolinda Gersão, William Boyd ou George Steiner.

Na nota de pesar emitida pelo Ministério da Cultura, a actual ministra, Dalila Rodrigues, salienta o papel do ensaísta que abriu “novos caminhos para a compreensão da literatura portuguesa da segunda metade do século XX”. E Marcelo Rebelo de Sousa faz notar a "figura decisiva” de Eugénio Lisboa “na vida intelectual moçambicana antes da independência, escrevendo nos jornais e dirigindo suplementos”.

Notícia actualizada com indicação de cerimónias fúnebres

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