Querem enfrentar a pandemia? Façam como Eugénio Lisboa: ataquem-na com poesia
Em Poemas em Tempo de Peste, Eugénio Lisboa enfrenta o vírus com ironia e acutilância, sem tréguas.
Há muitas formas de lidar com a pandemia, desde as sanitárias (básicas e essenciais) às acções de resistência. Entre estas, estão na primeira linha as artes. Que, sendo das maiores vítimas das privações ditadas pelos cuidados de saúde, também vão reagindo, fazendo da pandemia pretexto e mote para as mais diversas criações. Ainda é cedo para saber o que, de tudo isso, ficará para o futuro, mas há, já hoje, obras que nos interpelam. Como, por exemplo, o recém-editado livro de Eugénio Lisboa Poemas em Tempo de Peste (Guerra & Paz, Setembro de 2020). Ensaísta, poeta, crítico literário, nascido em 25 de Maio de 1930 em Moçambique (na antiga Lourenço Marques, hoje Maputo), autor de inúmeras obras e o maior especialista português em José Régio, Eugénio Lisboa já tinha escrito, quase no início da sua Crónica dos Anos da Peste (em dois volumes, editados em 1973 e 1975), isto: “Quando a peste cerca a comunidade, a confusão e o salve-se quem puder entram na ordem do dia.” Agora, tomando a pandemia como uma outra peste, ele escolheu a poesia para, entre a observação irónica e a palavra acutilante, lhe desferir os golpes que a inspiração lhe foi ditando. Impressos por ordem cronológica, de “31 de Março do Ano da Peste”, data do primeiro (todos estão datados) até 28 de Julho de 2020, dia do último, é como se através destes seus poemas nos debruçássemos sobre uma janela onde a vida agora mal passa.
Um exemplo: “As ruas ficam desertas/ e os laços que a vida laça/ logo tu os desapertas/ ao ver a morte que passa.” (págs. 17-18) Ou: “Antes gostávamos de estar em casa,/ e o vírus deu-nos isso de presente/ mas como o estar em casa nos atrasa/ a vida, que ficou absurda, de repente!” (pág. 21) Ou ainda este excerto, glosando João de Deus: “Beijo na face pedia-se e dava-se:/ agora, menino, o desejo trava-se!” (pág. 25) Há também, e muitas, observações irónicas e mordazes, algumas ao estilo das velhas cantigas de escárnio e maldizer. Hão-de recordar-se de como se brincou, logo a seguir ao 25 de Abril, com o facto de não terem saltado logo das gavetas as tais obras-primas que se dizia guardadas ao abrigo da censura, prontas a publicar. E não as havia. O que Eugénio Lisboa agora escreve lembra esses dias: “Preparo-me, com gozo, para ver,/ se tudo isto enfim terminar,/ quantas obras-primas vai haver/ nas gavetas por aí a engordar!” (pág. 21)
Para cada poema, há inspirações várias. Como a triste sina dos mais velhos. Em “Conselhos aos idosos de Christine Lagarde e outros benfeitores” (incluindo “um senhor da América do Norte”), ele termina assim: “Mas viver não é exagerar,/ há que cuidar sempre dos cifrões:/ prà economia não parar,/ metam os velhos à vida travões!” (pág. 35) E assina: “Eugénio Lisboa, que ficou muito preocupado com a economia do globo, que ele tem estado, sem ser por mal, a prejudicar.” Não escapam à mordacidade sua pena Trump ou Bolsonaro, nem tão-pouco o CDS ou o Chega, cada qual a seu pretexto. Mas como é esta nova peste que o move, Eugénio Lisboa centra-se nos seus efeitos, discorrendo sobre coisas como o amor virtual (“usa-se o computador,/ neste dias desolados,/ para fazer amor,/ mas com pífios resultados.”), a Vénus de Milo sem público no Louvre, Fernando Pessoa sozinho no Chiado, ou a língua portuguesa (“Com a língua portuguesa me caso,/ com ela vivo quando é preciso;/ a língua portuguesa não tem prazo/ e veste-se de luxo e conciso.”, pág. 63). Mas recorda também eras de saudades suas, como as do Índico; ou figuras saudosas, com a do poeta Reinaldo Ferreira (1922-1959) ou a da sua mulher Maria Antonieta, sua companheira em 57 anos, que morreu em 30 de Julho de 2016 e à qual já havia dedicado não só um volume inteiro, Acta Est Fabula, Epílogo (Opera Omnia, 2017) como livros posteriores.
Dois últimos excertos: um, dedicado à sua gatinha, Ísis: “É esta cativa/ que me tem cativo,/ só com ela vivo/ por pouco que viva.// (…) A minha gatinha,/ de porte altivo,/ mantém-me cativo/ coa sua patinha.” (pág. 27) Assina: “Eugénio Lisboa, lembrando-se vagamente de um poema de Camões, um seu colega em poesia, que também passou maus bocados.”
E este outro, intitulado “Convite aos poetas da República”, como remate: “Nestes tempos de aflição,/ quando a angústia nos devora,/ não é grande petição/ pedir à lira que chora/ que tente mudar de vida:/ que se torne atrevida,/ sarcástica, aguerrida,/ acutilante, fodida!/ Lixe-se a melancolia,/ refúgio de quem não luta,/ e combata-se, de dia,/ o vírus filho da puta!/ Às armas, caros poetas/ às armas todos os dias:/ só desistem os patetas/ que têm as partes frias!” (págs. 37-38) Por que esperam?