O “cara” valente
Faltava-lhe o atrevimento, a coragem para o amor. Porque para o amor é preciso bravura. É preciso audácia para mergulhar no desconhecido de uma escuridão profunda que se esconde para dentro de nós.
Sempre me pareceu incerta e ambígua a definição de “coragem”, uma semântica escorregadia essa que se esconde na virtude da bravura. O que é ser-se corajoso? É aquele que age sem brandura? Intrépido e destemido, sempre dois passos à frente da cautela, do temor, da hesitação? O que se lança perante uma ordem sem duvidar? Ou o que enfrenta as regras instituídas, os cânones, padrões, leis? É o que não demonstra fraqueza, medo, perturbação? Ou o que, pelo contrário, se vê perante a sua fragilidade mais vulnerável e a despe sem pudores? O que se atreve a falar? Ou que ousa calar? O que enfrenta o desconhecido, ou o que arrisca a reconhecer o desconhecido em si? É o quê a valentia? É escalar o Monte Evereste sem reservas de oxigénio? Ou ser capaz de dizer uma coisa que nos deixa sem ar — num golpe de alpinismo amoroso?
Sempre me considerei muito pouco valente e atrevo-me a dizer que sou até bastante piegas. Jamais faria bungee jumping; dificilmente partiria para uma expedição no deserto sem telemóvel, jipe com ar condicionado, repelente para cobras venenosas, e escolta de vários médicos-mecânicos-assistentes; não me atiraria de paraquedas de um avião nem que estivesse agarrada a um paraquedista muito experiente — a não ser com a garantia expressa de que excecionalmente me seria facultado um paraquedas sobresselente para o caso de falhar o paraquedas sobresselente do paraquedas sobresselente, e com a salvaguarda de que o paraquedista muito experiente que saltaria comigo em braços seria o Jason Momoa.
A ideia de nadar com tubarões (mesmo que num cenário paradisíaco das Maldivas, e com a confirmação de que eles só se interessam por carne de foca) não me atrai. Eu estou sempre a confundir os nomes das pessoas, o que é que me garante que o tubarão que tem um cérebro bem mais pequeno que o meu não me confunde com uma foca? E de todas as vezes que me tentam convencer a experimentar aquelas montanhas-russas de parques temáticos, que catapultam e chocalham as pessoas, e desafiam a força G (a força proporcional à massa e à sua aceleração), pergunto sempre se há alguma cama de rede lá por baixo, para garantir que a minha massa de 53 quilos não cai em direção ao solo e experimenta uma aceleração em direção ao hospital.
O expoente máximo de bravura que alguma vez demonstrei foi ter participado numa audição para bailarinos profissionais para uma ópera, quando o mais próximo que tenho de formação em ballet foi frequentar aulas de dança aos dez anos. No entanto ditava a minha precária condição financeira de atriz que eu respondesse "sim" a qualquer questão sobre aptidões nas entrevistas para castings (da mesma forma que sempre que me pediam Carta de Motivação eu entregava a carta da EDP de aviso de corte de energia por falta de pagamento).
Por isso, se o papel num espetáculo, ou neste caso numa ópera e, portanto, a eletricidade desse mês dependesse de uma proeza qualquer, eu tinha a coragem de responder "sim" a tudo! Logo se veria, caso ficasse com o papel. “Sabe andar a cavalo?” Sim (o máximo que experimentei foi um de plástico na Feira Popular). “Pratica Artes Marciais?” Todas! Kung Fu, Karaté, Taekwondo, Sashimi. “Sabe cantar?” Claro! (Quem não sabe! Entrei em várias peças musicais por fingir que sabia cantar nas audições de Frágil, do Jorge Palma. Depois de contratada, acabavam por me pôr sempre a fazer playback por questões de “segurança” do espetáculo.)
Enfim, dessa vez estava numa audição para bailarinos profissionais e percebi que me tinha enfiado num valente sarilho quando nos pediram para apresentar um solo de dança à frente de todos, e comecei a ver os candidatos, um a um, a fazerem piruetas e espargatas ao som de Tchaikovsky, até chegar ao momento em que chamaram o meu nome para apresentar o solo. Em vez de fugir, saltei destemidamente para o centro do palco onde desatei a correr em círculos enquanto cantava o Frágil e pensava o que fazer a seguir — perante o olhar estupefacto dos bailarinos e do coreógrafo que ia dirigir a ópera. Ao fim de alguns minutos a correr em círculos achei que a minha performance surrealista não me iria garantir o lugar, e decidi cair no chão tragicamente como se tivesse sido baleada, terminando com o que poderia ser considerada uma dança tribal inspirada pela ancestral Shakira, sem música. Não fiquei na ópera. E nunca mais voltei àquele teatro. Percebi que a coragem irrefletida nos pode meter em maus lençóis. “É corajosa?” Nem pensar!
Mas ele não. Ele era uma “Cara Valente” como o da letra da Maria Rita: “Sempre diz que é do tipo cara valente / A gente sabe / Esse humor / É coisa de um rapaz / Que sem ter proteção / Foi se esconder atrás / Da cara de vilão.” Parece que a música popular brasileira encontra sempre forma de agasalhar com poesia mesmo as imperfeições da vida.
Era valente! Tinha servido no Afeganistão, no Sudão, na República Democrática do Congo (e noutros territórios com tudo o que é menos democrático possível). Tinha integrado Operações Especiais, tinha enfrentado as milícias mais cruéis, tinha habitado nos piores lugares para se estar. Tinha encontrado as atrocidades que somos capazes de infligir uns aos outros quando tocamos nos limites da nossa existência desumana, e tinha pisado territórios onde a morte se colava nas pegadas.
Tinha passado por privações que só os corpos mais robustos são capazes de suportar, ainda que defendido por munições modernas, tecnológicas — mas e debaixo da armadura não são os mesmos órgãos tenros e perecíveis, o mesmo coração que dispara quando o oxigénio falha? Tinha feito tudo isso, e ainda assim… Falou-me secamente dos dias que passara na Base. De como controlava as variáveis, as comunicações, as entradas e as saídas. Tudo sob controlo (incluindo o medo, tão controlado, garantiu-me, que nem o sentia). Tinha falado do perigo que espreitava dos gestos banais, dos carros terroristas que entravam na Base disfarçados nas viaturas de mantimentos, mas afinal eram kamikazes prontos a explodir… E de como tinha visto, ainda que raros, companheiros a entrarem inteiros, e saírem por metade: metade corpo — metade-homem (metade-filhos, metade-maridos, metade-irmãos, divididos em partes que nunca iriam recuperar).
Disse-me todas essas histórias que não são só lá da História, que não são só dos filmes americanos, de uma realidade tão distante da nossa. E contou-me tudo entre umas fatias de pizza que se come fora de horas, depois de um concerto do Chico Buarque, mesmo ali na esquina da Avenida de Roma, em Lisboa, onde mastigava episódios de Cabul da mesma forma que mastigava a sobremesa de Nutella. Imperturbável. Rígido. Gélido. Ainda assim… Eu sabia que não era seco o que corria dentro dele, e conseguia espreitar os líquidos que irrigavam debaixo do seu tronco rígido, do maxilar tenso, conseguia ver o coração a pulsar para lá da transparência do gelo. Mesmo que ele secasse o final da frase, que desviasse os olhos dele dos meus, com medo que eu fosse encontrar algum restinho de humidade lá debaixo, alguma história que ainda não se tivesse enxugado, secado completamente. Fechava os olhos para não deixar entrar luz, para deixar murchar estas coisas que dizia friamente da boca para fora, e eu adivinhava as coisas que brotavam da boca para dentro, debaixo das palavras, as suas raízes húmidas.
Eu ficava só a escutar, nunca a dizer. Não lhe contava das minhas cantigas, das minhas correrias, das montanhas-russas, porque nunca havia espaço, porque parecia nunca sobrar tempo, porque de cada vez que tentava falar das minhas coisas, dos meus teatros, dos meus palcos, era como se de súbito ele se recolhesse de volta à Base — assustado pelo desconhecido tão estranho e diferente que ele não saberia responder com bravura. Não poderia controlar as variáveis. E se não fosse com bravura, com valentia, como responderia? Ele não sabia. E não saber era o inimigo. Então entrincheirava-se.
Abria um fosso gigante entre nós. Uma brecha que só conseguíamos extinguir quando os nossos corpos tão estranhos quanto dois contingentes militares estrangeiros, perdidos num mesmo território familiar, se encontravam. E ele parecia ser de súbito invadido pela milícia de tudo o que o corpo continha e não podia controlar, e jorrava intenso e fértil. Feliz. Mas imediatamente recuperava, tático. Vedava o acesso, montava arame farpado. E eu encolhia-me, mole, para me encaixar no corpo dele. Líquida… A procurar moldar-me na posição dos seus braços duros, para preencher as bordas, as covas, ocupar a brecha. Por vezes encontrava a posição certa para espreitar o que acontecia debaixo dos olhos. E quando o abraçava sentia o estilhaçar de vidro muito fino sem espessura para se suster, quase a quebrar… Mas quanto mais eu me aproximava mais proteções ele erguia: escudos antiaéreos, palavras blindadas, gestos de contra-ataque. Ele, encolhido atrás do vidro, tão frágil quanto cortante, com medo de se derramar.
É curioso que o mesmo medo que nos impulsiona a agir, a lutar, seja o mesmo que nos retrai, que nos impede, que nos paralisa as pernas, que nos transforma em gelo. Percebi então. Faltava-lhe o atrevimento, a coragem para o amor. Porque para o amor é preciso bravura. É preciso audácia para mergulhar no desconhecido de uma escuridão profunda que se esconde para dentro de nós, para deixar aberto essa brecha de felicidade e falta. É preciso valentia para a intimidade, para respirar sem oxigénio nesse lugar onde vive a nossa fragilidade mais pura, para depositá-la entre outras mãos, que nos agarram sem rede.
Um dia tentei furar as barreiras, entrar na Base. “Olha lá, tens assim tanto medo do amor que tens de boicotar tudo desta maneira?”, perguntei. O ataque foi feroz. Violento. Bélico. Explosão. Kamikaze. Destruição mútua assegurada. Morte ao outro e a si mesmo. Terrorismo emocional. Nunca consegui alcançar o que se passará dentro de um terrorista — a pulsão de destruir tudo incluindo a si mesmo. Será “coragem”?
Pesquisei a raiz da palavra coragem: “coraticum do Latim, palavra relativa ao ‘coração’. Coração, coeur, cuore, corazón. O radical ‘cor’, como em inglês, core, que significa o centro, o núcleo”. O coração seria então o núcleo da coragem…
Ele não pôde se entregar / E agora vai ter de pagar / Com o coração / Olha lá!/ Ele não é feliz / Sempre diz / Que é do tipo cara valente…
A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990