Montenegro, Cavaco, Governo de 1985: nada duas vezes

Cavaco tinha noção de que era um governo minoritário. Montenegro parece não ter. Como é impossível não ter, conclui-se que está a aproveitar tudo para a campanha das próximas eleições antecipadas.

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É um fascínio assistir à recuperação de uma certa mitologia cavaquista pelo primeiro-ministro. Há boas razões para isso: Cavaco Silva foi o político de direita mais bem-sucedido da democracia, com um governo minoritário que sobreviveu a uma moção de confiança e conseguiu obter duas maiorias absolutas. A segunda razão é que focar-se em Cavaco ajuda a esconder a sempiterna sombra de Passos Coelho, de quem Luís Montenegro foi líder parlamentar e cuja herança – em parte – o novo chefe do Governo renega.

Ao reabilitar, no discurso de posse, o famoso “deixem-me trabalhar” e a admitir que o PS, à partida, possa vir a ser “oposição de bloqueio”, Montenegro assume as palavras do “mestre”, mas não exactamente as lições. Perante a consciência de que tinha um governo minoritário, em 1985, Cavaco Silva (com 29,8%, como Montenegro) falou com o PS (20,7%) e até admitiu integrar no Governo o PRD (17,9%), caso este quisesse. Montenegro não fez nada disto. Cavaco apresentou o programa do Governo aos partidos antes de ser submetido à Assembleia da República. À hora a que escrevo, não estão anunciadas reuniões do PSD com os partidos parlamentares para explicar o programa do Governo. Está apenas anunciado que o texto é entregue na quarta-feira e discutido na quinta e sexta-feira.

Cavaco tinha noção plena de que tinha um governo minoritário. Luís Montenegro, a avaliar pelo tom de desafio do discurso de posse, quase parece não ter. Como é impossível que não tenha, pode-se concluir que, mais do que Cavaco em 1985, tenta aproveitar todas as ocasiões para poder vitimizar-se, crente de que, no caso de convocação de eleições a médio prazo, os portugueses tenderão a dar-lhe uma maioria mais robusta do que a que agora existe – em que a AD só tem mais dois deputados do que o PS.

Uma curiosidade é que as duas célebres expressões cavaquistas, agora recuperadas por Montenegro, não pertencem ao início do mandato de Cavaco, mas ao seu estertor. O “deixem-nos trabalhar” é de 28 de Julho de 1993, numa apresentação de candidatos autárquicos da Área Metropolitana de Lisboa. O alvo era o Presidente da República Mário Soares, que, por essa altura, já estava muitíssimo empenhado em desgastar o cavaquismo (Pacheco Pereira, que tinha apoiado Soares em 1986, foi o grande porta-voz do PSD contra o Presidente da República, nesses tempos).

A outra famosa frase, a das forças de bloqueio, é num congresso do PSD em Novembro de 1992, um ano depois da segunda maioria absoluta. Além de Soares, Cavaco contestava todos os outros fiscalizadores do Governo, como o Tribunal de Contas e o Tribunal Constitucional – ao contrário do que acontece agora com Luís Montenegro, a Assembleia da República com uma farta maioria PSD não bloqueava nada. Vale a pena recordar a frase: eram "forças de bloqueio” “todos aqueles sectores ou políticos que, frontal ou encapotadamente, querem impedir a legislação reformadora e querem bloquear a modernização do país. Fazem discursos sobre reformas, mas depois tentam impedir o Governo de as concretizar”.

Nada é igual a 1985, o Chega não é o PRD, Montenegro não é Cavaco Silva e o Cavaco das “forças de bloqueio” e do “deixem-nos trabalhar” era um homem em fim de ciclo, com maioria absoluta. Montenegro está em arranque de ciclo, com mais dois deputados do que o PS na Assembleia.

A forma como várias figuras do PSD falam do Governo de 1985 como sinal de esperança relativamente à situação actual não tem mais adesão à realidade do que os “desejos de melhoras” que fazemos aos enfermos. É um mero consolo. E como nos ensinou a poetisa polaca Wislawa Szymborska (e muito antes dela Heráclito) “nada acontece duas vezes/nem acontecerá. Eis a nossa sina/nascemos sem prática/e morreremos sem rotina”. A ver vamos.

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