Militarismo não rima com civismo

Em pleno século XXI, achar que a resposta para o futuro do país é colocar compulsivamente jovens numa via militar só mostra que os valores dessas instituições não se coadunam com os valores de Abril.

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Megafone P3: Militarismo não rima com civismo DAVID CLIFFORD (ARQUIVO
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Há dois anos, escrevi neste jornal sobre o que poderiam os atores políticos e a sociedade fazer para incentivar a participação cívica dos jovens. Dois anos passaram, um governo caiu, outro formou-se e comemoram-se 50 anos de uma revolução militar pacífica - à qual o povo se juntou. Desde 1974, conquistou-se a Liberdade, emanciparam-se as colónias, mudámos de um passado de competição para um presente de cooperação, sempre de cravo na mão.

Mas a memória não resiste a 50 anos. Se alguns saudosistas querem voltar aos tempos do Deus, Pátria e Família, outros querem reanimar o lado bélico das Forças Armadas utilizando como justificação o medo da guerra às portas da Europa. Outros - jovens, como eu - não têm memória de tempos sem liberdade, ou mesmo de conflitos armados neste continente, e damos como garantidos os direitos e a paz pelos quais gerações passadas lutaram. Este conforto democrático em que vivemos pode levar a uma certa letargia dos mais jovens, admito. Mas a ativação desta faixa etária deve servir fins claros e específicos, tendo como valores orientadores (individuais e coletivos) o progresso e a cooperação. No entanto, aquilo a que temos assistido é uma tentativa de retrocesso, ignorando esses mesmos valores.

Várias figuras das Forças Armadas Portuguesas têm advogado por uma retoma do Serviço Militar Obrigatório (SMO) como forma de instituir um espírito de cidadania nas camadas mais jovens. Isto tem sido feito de forma ativa e coordenada, gerando confusão entre o SMO e um proposto Serviço Nacional de Cidadania (SNC). A escolha dos termos é tudo menos não-intencional: o militarismo é mascarado de civismo e o caráter obrigatório é vendido como um sentimento de compromisso nacional. Os timings em que surge esta questão também são tudo menos acidentais. O regresso do Serviço Militar Obrigatório, supostamente em versão 2.0, não coincide por acaso com o momento em que 50 deputados de extrema-direita se sentam no Parlamento e com a tomada de posse de um ministro da Defesa Nacional vindo de um partido conservador.

A proposta da SEDES referida recentemente por Vieira Borges foca-se em que os jovens possam "escolher dar ao Estado seis meses a um ano de serviço na saúde, na educação, na justiça, na segurança". Tentando ser o mais ingénuo possível, isto soa mais a supressão de necessidades estatais permanentes recorrendo a um sistema de afetação de jovens alimentado de precariedade "em nome da nação". Se fosse efetivamente um SNC, estes jovens teriam mais hipóteses de escolha de como se envolver na comunidade - como a Administração Pública, Serviços Culturais, Proteção Civil, autarquias e estado local, ONGs e IPSS, etc -, escolha na localização para onde seriam destacados no território nacional e teriam direito a compensações dignas do serviço prestado. Tome-se o exemplo do Corpo Europeu de Solidariedade, sucessor do Serviço Voluntário Europeu, que proporciona oportunidades a jovens nas comunidades dos diversos países da UE, garantindo recursos de alimentação, alojamento e transporte aos participantes.

Em pleno século XXI, achar que a resposta para o futuro do país é colocar compulsivamente jovens numa via militar só mostra que os valores dessas instituições não se coadunam com os valores de Abril. Por exemplo, em vez de um ramo das Forças Armadas, as pessoas forem colocadas numa missão diplomática, talvez aprendam a contribuir para a desescalada de conflitos ou mesmo para evitar que tenham início.

Para além das sugestões que dei há dois anos, a par do Dia da Defesa Nacional, deveria ser criado um Dia da Cidadania que inclua atividades de sensibilização para temas como voluntariado, organização do Estado, direitos e deveres em democracia, literacia fiscal e contributiva, entre outros. O melhor Serviço Nacional de Cidadania seria o Estado aproximar-se dos cidadãos e não forçar os cidadãos a aproximar-se das visões (militares) do Estado.

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