Dama envergonhada para um digníssimo cavalheiro
Se saía de vestido floral e de chapéu para um passeio, as carícias das folhagens, os ramos que lhe roçavam nas costas, ou as árvores que ofereciam as suas frutas, impregnavam-na de um torpor lúbrico.
Reza a lenda que, numa madrugada longínqua de espessa bruma, enquanto pernoitavam nos ditosos leitos as suas mui estimadas descendentes, uma jovem mulher leu, numa rede social, um comentário redigido por um errante e anónimo cavalheiro que, com maledicência e desdém, apontava para a ignóbil simplicidade e modernidade da sua escrita, tão “atrevida” e pouco desafiante para um primoroso leitor como ele próprio se considerava.
Desde então, a mulher, sempre disposta a atender aos anseios de incógnitos terceiros, havia decidido destituir-se de toda a modernidade que lhe coubera em sorte por circunstância do seu nascimento, no séc. XXI, e encarar o espírito de outros tempos, de tempos em que a limpidez apenas se aproximava da água translúcida com que se preparavam os banhos, e jamais de frases numa crónica de jornal.
Não lhe foi muito difícil. A senhora estava preparada para se libertar dos ares deste tempo, e inspirar os ares mais impermistos, ainda que ligeiramente mais tuberculosos, do séc. XIX.
Acresce que, por redobrada sorte, e por ocasião das Férias da Páscoa, a mulher encontrava-se na velha casa de família, uma dessas casas da Beira, de Outrora, circundada por muros altos de pedra, uma casa onde o ranger do chão compõe melodias com o primeiro bater do Sino da igreja, igreja sempre, e irremediavelmente, próxima. Uma dessas casas cuja alvura das paredes convida à contemplação da paisagem em peitoris, de onde se vislumbra o sol a doirar as fulvas folhas da vinha e onde o entardecer se precipita sobre os espíritos, obrigando a poisar mantas de lã nos ombros.
Era, portanto, um ambiente convidativo ao repouso e à ingestão de carnes de caça e de licores e, ao mesmo tempo, um poiso para acolher esse novo espírito que o distante aldeão virtual lhe impusera. Ah! Certamente ali encontraria inspiração para abordar temas que agradariam ao pródigo varão. Entraria em descrições da casa, tão onduladas e serpenteantes quanto os ornamentos do portão de ferro que vedava os hóspedes naquela atmosfera lânguida e melancólica.
A esperança de que esta prosa fizesse pelo incauto homem o mesmo que as luzidias papoilas nos varandins faziam pela sua alma, que lhe apaziguasse as fúrias e que o afastasse das mordacidades sob a forma de comentários, era esta esperança que a nossa jovem primaveril trazia consigo.
A mulher não precisava de se afastar da casa para encontrar assuntos que lhe aprouvessem, bastava-lhe elevar as pálpebras e, no alpendre ornado de heras, vicejavam florzinhas que a enchiam de inesperado regozijo.
Se saía de vestido floral e de chapéu para um passeio, as carícias das folhagens, os ramos que lhe roçavam nas costas, ou as árvores que generosamente ofereciam as suas frutas, impregnavam-na de um torpor lúbrico.
Mesmo os corredores desabridos, onde arcas inóspitas apareciam e onde quadros de antepassados de olhar áspero a recebiam, alimentavam-lhe as ideias, e logo a levavam a sentar-se direita na cadeira do salão, pronta a encarar a missão que lhe cabia, que sempre lhe caberia enquanto mulher desse tempo, e que lhe apertava tanto o espírito quanto o corpete a cintura: a de satisfazer os outros, e a de atender sempre às suas exigências, e, mesmo que tremulamente, fazer o que fosse necessário para acalmar o esbracejar colérico de um homem.