Eu jogo, tu jogas, ele é jogador patológico
Enquanto esta gamificação nos é apresentada como uma banalidade inocente, há um mundo desconhecido de portugueses com problemas relacionados com o vício do jogo e das apostas online.
Vivemos num tempo marcado pela transição digital em negócios tão distintos como o da banca, o da comunicação social, o do retalho ou o dos jogos de azar. Com essa mudança veio outra: a gamificação, que transforma qualquer experiência numa espécie de jogo (game) em que se ganham medalhas virtuais, moedas de ouro ou descontos especiais.
Um aluno tem um plano de estudos online? Então também tem troféus virtuais como recompensa pelas tarefas concretizadas. Um cliente usa uma app no supermercado para registar e pagar as compras? Nesse caso, pode ganhar descontos em cartão, acumular saldo e ainda divertir-se com jogos disponibilizados na aplicação. Um automobilista usa uma app para saber quanto tempo vai demorar do ponto A ao ponto B e para ter a certeza de que escolhe o melhor caminho e vai dando feedback do trânsito aos outros condutores? Então, vai subindo de posição no ranking dos utilizadores e ganhando medalhas.
Os exemplos são infinitos. Para uma acção, há uma recompensa. Basta entrar no jogo. O objectivo é sempre o mesmo: criar habituação, fomentar uma ligação especial com aquela marca, gerar envolvimento (engagement).
Na realidade, é uma estratégia de marketing que, na actualidade, parece ser bastante mais eficaz do que outras, porque está tudo à distância de um dedo no telemóvel. Também funciona porque assenta na ideia de que o prazer de ganhar é irresistível.
Enquanto esta gamificação se estende a vários momentos do nosso dia-a-dia (experimente contá-los) e nos é apresentada como uma banalidade inocente, há um mundo desconhecido de portugueses que se debatem com problemas sérios relacionados com o vício do jogo e das apostas online. Porque jogar nem sempre é uma banalidade inocente e puramente lúdica.
Não sabemos quantos são os jogadores patológicos em Portugal nem que idade têm (na realidade, sabemos muito pouco sobre eles). Dados recentes mostram-nos apenas que, no final de 2023, havia 215 mil registos de pessoas que se auto-excluíram do jogo online por sentirem que estavam a ser prejudicadas por ele — um ano antes, eram 151 mil.
A reportagem que trazemos nesta edição com retratos de jovens que se viciaram em jogo, incluindo apostas online (nunca estamos a falar de videojogos), é também um pedido de ajuda. E, afinal, o que se pede? Linhas de apoio e maior responsabilidade social, e envolvimento por parte das empresas de jogo. Parece fácil e parece barato, como o Totoloto. Só não dá milhões.