Os cidadãos também deixam marcas pelas ruas do Porto e Miriam quer conhecê-las

Construção do espaço público pelos cidadãos cria “diversidade estética” num Porto algo homogéneo. Fotógrafa e investigadora recolheu “resquícios” dessa participação informal. Há uma exposição no Mira.

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Exposição de Ana Miriam está no Mira Fórum, no Porto, até 30 de Março. Fotógrafa está a recolher participação de cidadãos que também integrarão a mostra Ana Miriam
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Numa cidade em acelerada transformação e contaminada por linguagens globais e genéricas, que espaço sobra para outros imaginários e marcas individuais de quem nela habita? Ana Miriam Rebelo pensa no assunto há vários anos. Fotógrafa com olhar treinado para detalhes e delicadezas, encantou-se com um Porto algo invisível, ignorado nas estratégias de comunicação oficiais da cidade. E começou a coleccionar “resquícios” dessa “cidade-sombra” onde a construção do espaço público preserva marcas dos cidadãos.

Podem ser acrescentos e alterações nas casas, bancos nas ruas, identificações alternativas do número da porta, casas para animais, caixas de correio e vedações. Ou simplesmente embelezamentos dos lugares, mais ou menos criativos, com azulejos, vasos, estatuetas, cata-ventos. A recolha de Ana Miriam não quer apenas “preservar a memória” destes sinais, mas também “transportar alguma coisa para o futuro”. Sem romantizações nem saudosismos, mas instigando uma participação no espaço público.

O assunto tornou-se tema de investigação. Em breve, Ana Miriam defende a tese de doutoramento em Design na Faculdade de Belas- Artes da Universidade do Porto, com um projecto financiado pela FCT e acolhido pelo Instituto de Investigação em Design Media e Cultura (ID+) e pelo Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo (CEAU). Mas dessa investigação – Identidades visuais e semânticas da cidade do Porto: um apuramento dos contributos da habitação informal – surgiu já uma exposição. A Cidade sombra e o que nela brilha – no Mira Fórum até 30 de Março – é também uma proposta de interacção com a cidade e abriu uma chamada à participação de cidadãos, convidando-os a observar a urbe e a partilhar os seus registos visuais e reflexões sobre o tema para o email chamada.cidade@gmail.com, através do Instagram (@imagina_porto) ou do Facebook. Essa recolha não vai parar com o fim da exposição no Mira, que no último dia projecta essas imagens, e as fotografias e reflexões continuarão a ser partilhadas nas redes sociais. Na página Porto Informal, a investigadora mostra também o seu “arquivo visual em construção”.

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Exposição está no Mira Fórum até 30 de Março. Fotógrafa está a recolher participação de cidadãos que também integrarão a mostra Ana Miriam

“Estéticas irrepetíveis”

A representação cidadã no espaço público reflecte “a presença quotidiana dos residentes, as suas identidades, e é também uma expressão de cuidado”. Um cuidado “espontâneo”, com o espaço público e a fronteira deste com o espaço privado, que põe à vista uma “prática de participação do comum” que, tal como existe agora, tende para a extinção. “É importante documentá-las, porque são configurações e estéticas irrepetíveis”, defende Ana Miriam.

A partir dos espaços domésticos do Porto – sobretudo no Oriente da cidade, onde centrou o caso de estudo da sua tese –, Ana Miriam descobriu apropriações onde cabem também as histórias dos lugares, muitos deles habitados por gente vinda de geografias rurais há décadas (e curiosamente, em alguns casos, agora lugares de fixação de comunidades imigrantes). Em Noêda, encontrou um conjunto de vasos embelezados por uma moradora com mais de 90 anos. “Costumavam deitar lixo naquele sítio e ela encontrou uma forma de o evitar.” Num bairro junto ao caminho-de-ferro, conheceu uma “decoradora de exteriores” que compõe um painel de azulejos num muro. “São processos superinspiradores. Às vezes resolvem coisas de maneira mais positiva do que as proibições.”

Para a investigadora, é importante “encontrar formas de preservar possibilidades de participação espontânea na produção do espaço”. E nada disso tem que ver com “cristalizar” a matéria e modos de vida, ressalva, mas com um pensamento sobre o que, desse passado, se pode e deve transportar para o futuro. Por uma razão simples: “Se a produção do espaço não é participada, dificilmente poderemos reconhecer-nos na cidade.”

A “estranheza” em relação à cidade, que “mudou muito rapidamente” nos últimos anos, já é real em alguns contextos – seja porque as pessoas deixaram de conseguir viver nela, consequência da especulação imobiliária, seja porque deixaram de a reconhecer. “Na Baixa encontra-se uma linguagem muito genérica e global que abafa as singularidades”, exemplifica. Em contexto residencial, a “estética regular não inspira a intervenção” e ganhou espaço “um entendimento de que lugares de uso comum não devem ser usados”.

Com trabalho etnográfico, muito centrado na fotografia, mas também com conversas com moradores, Ana Miriam foi dando corpo à “intuição” de que havia nestas representações um “valor” que “subverte, intencionalmente ou não, modos de estar no espaço público mais normativos” e que oferecem “diversidade estética” à cidade. “Há uma dimensão política nessa intervenção.”

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"Diversidade estética" enriquece as cidades, defende a investigadora a concluir a sua tese de doutoramento Ana Miriam
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Fotógrafa instiga cidadãos a deixarem a sua marca no espaço público Ana Miriam

Identidade vs. representação

Ana Miriam não gosta da palavra “identidade”. “É um conceito muito complicado…” O problema tem origem na adaptação que o Marketing fez de “identidade do lugar”, conceito da psicologia ambiental relacionado com os laços entre pessoas e geografias. “O Marketing apropriou-se da ideia, até passarmos a falar da identidade do lugar como uma identidade gráfica”, explica a investigadora. “Quando isso ocupa tanto espaço, parece-me problemático, porque a nossa relação com a cidade não é, antes de tudo, comercial. Somos cidadãos e não consumidores.”

Pode chamar-se, por exemplo, identidade à imagem gráfica criada pela Câmara do Porto para o município. Mas é a marca “Porto.” uma representação da cidade? “Dizer identidade leva a naturalizar uma coisa que é uma construção e que é sempre política”, argumenta. “Prefiro usar a palavra ‘representação’. Parece-me mais honesta.” Para a investigadora, a marca Porto. tem “uma imagem muito voltada para fora e genérica” – semelhante, aliás, a imagens de cidades como Praga – que não espelha representações como as fotografadas por ela recolhidas. Construir uma representação colectiva obrigaria, na sua opinião, a uma integração desta “expressão popular na produção do espaço”.

A riqueza das cidades, diz a fotógrafa e investigadora, está na “diversidade” – e esta é fruto da “participação”. “Se não forem reinventadas formas de participação, a produção do espaço público será dominada por muito poucos agentes e isso já está a acontecer”, diagnostica, recordando que o espaço público é um “espaço discursivo importantíssimo”. “Estamos a falar de democracia.”

Há lugares da cidade onde a linguagem é demasiado genérica e isso "abafa as singularidades" Ana Miriam
Cidade sofreu uma “transformação estética gigante” nos últimos anos Ana Miriam
Marketing apropriou-se do conceito de identidade do lugar e investigadora prefere usar o termo representação. "É mais honesto" Ana Miriam
Há uma "dimensão política" nessa apropriação da cidade Ana Miriam
“Se a produção do espaço não é participada, dificilmente poderemos reconhecer-nos na cidade.” Ana Miriam
Investigadora centrou o seu caso de estudo no Porto Oriental Ana Miriam
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Há lugares da cidade onde a linguagem é demasiado genérica e isso "abafa as singularidades" Ana Miriam

O equilíbrio é delicado. Ana Miriam reconhece alguma “valorização” destes espaços “ofuscados por exercícios e estéticas de branding”, usando palavras do orientador da sua tese, Heitor Alvelos, da Faculdade de Belas-Artes da Universidade do Porto, que escreveu a folha de sala da exposição do Mira. Mas esse tributo conduz, em alguns casos, a uma “transformação estética gigante”, aponta Ana Miriam: “O problema é tornarem-se algo completamente diferente.” Um exemplo: transformar uma ilha num AL é valorizar, mas é também esvaziar o sentido inicial daquele lugar.

O título da exposição – A cidade sombra e o que nela brilha – joga com essa ambivalência: “É uma cidade-sombra, no sentido do lado b, da cidade ofuscada pela hipervisibilidade da restante. Isso pode ter um lado negativo, de marginalização, mas ao mesmo tempo essa invisibilidade traz vantagens.”

Apesar de as manifestações encontradas por Miriam serem, na maior parte dos casos, feitas por uma população mais envelhecida, a investigadora foi encontrando uma “preocupação com a possibilidade de estes espaços desaparecerem” e, aqui e ali, um envolvimento dos mais novos. “As hortas urbanas são um sinal de apropriação. O sucesso das Worst Tours [projecto turístico que mostra o lado mais esquecido e desconhecido do Porto] é também uma prova de que o diferente é valorizado. Há gente preocupada com isto.”

No processo do doutoramento, Ana Miriam Rebelo realizou workshops com alunos das faculdades de Arquitectura, Belas-Artes e da ESAP, com colagens a partir de imagens do seu arquivo. “Foi uma construção intuitiva e colectiva”, em tudo condizente com o objectivo do seu projecto, impulsor de novas representações da cidade. Esse trabalho deverá originar outra exposição em parceria com o Mira, galerias onde a investigadora bateu à porta para pedir a Manuela Matos Monteiro uma ajuda de mediação com a população local – e de onde saiu com planos para duas exposições.

No fundo, conclui a fotógrafa e investigadora, tudo conduz ao conceito de direito à cidade, cunhado por Henri Lefebvre no século passado. Não só nas dimensões da habitação e centralidade, mas também no “direito à obra”, resume. “O direito a sentir que participamos do que também é nosso. Isso cria uma relação muito diferente com os lugares.”

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