Richard Serra, o gigante

Nas suas palavras, “experimentar uma das minhas peças é sentir uma noção de tempo, do lugar e reagir a isso”.

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Na história da escultura contemporânea destacam-se, a meu ver, poucos artistas tão radicais, consequentes e influentes como Richard Serra. Nada ficou como era depois da obra deste gigante. Desde o aparecimento, a meio dos anos 60, de todo um conjunto de artistas norte-americanos (usualmente denominados pós-minimalistas) que as linguagens canónicas esculturais, sobretudo as que faziam uso da verticalidade antropomórfica e hierárquica, foram não só postas em causa e destruídas como, simultaneamente, todo o seu campo de possibilidades foi expandido muito para além de qualquer ideia de forma enquanto objetivo final cristalizado em si mesmo. Diversa das linguagens “duchampianas”, a sua pesquisa dirigia-se sobretudo para uma ideia de antiforma (ou antiformalismo) “non-sculptural”, preferindo a horizontalidade, a gravidade, e o acaso como factor generativo e performativo das obras, em divergência com a ideia de “objecto específico” que as teorias do minimalismo preconizavam. A escultura passou a ser não apenas a forma contida num material, como o próprio material em si mesmo (utilizando sobretudo produtos industriais, de uma forma directa e sem qualquer efabulação ou ilusionismo, “This is this, this is not that”) e a acção e movimentos que dão origem a essa forma ou que a prolongam no espaço e no tempo. Acumular, dobrar, amarrotar, cortar, torcer, envolver, prensar, apoiar, pisar, rasgar, percorrer, lançar… todas as forças que um corpo pode exercer sobre um material podem tornar-se a obra em si mesma, não no sentido performativo (embora, muitas vezes, registado em filmagens) mas, sobretudo, como vestígio material mais ou menos perene.

Quando Richard Serra lança chumbo líquido contra as paredes ou cantos de um espaço, está a demonstrar de forma inequívoca e radical a antiquíssima relação entre processo e matéria, e a mudança de estado que esta sofre num registo de tempo que pode ser pouco mais do que efémero. Na verdade, temos de considerar que este escultor nunca produziu objectos, mas estados transitórios de movimentos actuantes, que tanto podem ser os do artista como os do espectador. Para Richard Serra, o visitante é parte integrante e generativa da própria obra e é ao percorrê-la, na distância de um extremo a outro, ao ser confrontado com as maciças e desmesuradas barreiras de aço que lhe impedem o caminho ou que o conduzem por sinuosas linhas em direcção ao centro sempre em fuga, que esta passa a existir. São sempre os espectadores que fazem uma obra de arte e, neste caso concreto, ver é também uma experiência corporal total, em que a massa, o peso e a medida que pressentimos nos lança abruptamente para um espaço poético sem palavras, muito mais musical e espiritual do que apenas visual.

É através da perspectiva do olhar do espectador que as suas esculturas ganham sentido: não se trata de objectos, mas da experiência de uma passagem. Nas suas palavras, “experimentar uma das minhas peças é sentir uma noção de tempo, do lugar e reagir a isso”. Desde as primeiras esculturas em borracha, látex, fibra de vidro ou chumbo até às enormes peças em aço-corten que as questões do peso, massa e equilíbrio e a sua relação com o visitante e o espaço, arquitectónico ou natural, se consolidaram numa linguagem reconhecida universalmente, deixando uma marca indelével na história e pensamento da escultura.

Pessoalmente, para além da utilização exclusiva do aço e do ferro, alguns outros aspectos me ligam à obra deste escultor e o tornam, juntamente com Alberto Giacometti, um dos poucos artistas realmente importantes para a minha formação e para o meu trabalho. Diria que, para além da questão do material, da crença de que a escultura não é um objecto e da convicção de que a obra precisa do espectador para ganhar existência, tudo o resto parece ser o oposto e optar por soluções antagónicas. Mas, na verdade, a pesquisa sobre o peso e a leveza, que é central em toda a história da escultura, é talvez o que nos une. Ou, pelo menos, aquilo que mais me tem ensinado no seu trabalho. Um grande poeta, meu amigo, mandou-me hoje de manhã as palavras de Richard Serra, dizendo que se lembrou de mim: “Everything we choose in life for its lightness soon reveals its unbearable weight”.

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