Não sejas queixinhas
Crescemos a engolir o choro. A deixá-lo todo entalado, barricado, a forçar os maxilares tremidos, todo para dentro, a fazer uma bola, como um balão de pastilha elástica que rebentou dentro da boca.
A quem a quem é que nos queixamos quando somos adultos? A quem fazemos queixinhas, esse método inquestionavelmente eficaz para purgar o desconforto, a birra, a exaustão, a irritação? “Mãe! Aquele menino deitou-me a língua de fora!”, “Mãe! Aquela menina roubou-me o baloiço!”, “Professora! Eles rasgaram-me os TPC!”... Quem é o adulto, quando somos adultos? Quem?! Deus? O Estado? O Universo? A Matrix? O Elon Musk? Imagino que as divindades terão mais em que pensar do que no trânsito congestionado na ponte às oito da manhã, na infiltração no telhado que pinga para o escritório, no nariz congestionado que pinga o dia todo, nos desvios para obras na estrada, nos desvios do horário, na Vida, nas dores de dentes, nas dores de Amor, no sabor desagradável do anestesiante no dentista, sobretudo quando se está com uma dor de Amor no molar, e a Vida toda em obras.
“Mãe, dói-me a barriga, não quero ir à escola!!!” Já não dá. Porque é para ir! É para atravessar a ponte, assoar o nariz, é para trabalhar, é para ir às compras, é para pagar as contas, é para voltar, para chegar apesar dos desvios, é para fazer as tarefas, os recados, os TPC! Chegada a idade adulta passa a ser interdito o território doce e macio das queixinhas, das festinhas da grande Mão (da grande Mãe) que repousa sobre a cabeça e nos enxuga as lágrimas: “Pronto, já passou…” Por isso, a maioria das vezes não passa coisa nenhuma.
Podia inventar-se um sistema de cartões de pontos para adultos, como há cartões de pontos dos supermercados ou da gasolina, como o sistema de pontos da carta de condução, com créditos para usar. Créditos de queixinhas. “Está com uma crise?” Pode faltar. Gasta um ponto. Pode faltar ao trabalho, às tarefas, às atividades extracurriculares dos filhos, ao jantar de família. Hoje pode faltar à Vida: no geral! “Está com uma irritação, indisposição, perfuração na boa disposição?” Tem dez créditos para gastar.
Mas à medida que se começa a crescer, o crédito das queixinhas diminui. Quando atingimos a maioridade cai a pique, esgota-se. Somos educados a engolir o incómodo, os nervos, as lágrimas, as lamentações: “Mãe! Aquela menina puxou-me o cabelo!!!” “Oh… É só cabelo, não sejas bebé!" Engolimos em seco. Às vezes engolimos com um copo de vinho. Dois. Três.
O que é confuso é que, enquanto crescemos, também nos ensinam a não engolir a maioria das secreções e matérias que saem do corpo: não se deve engolir a expetoração, não é bom reter o chichi, não se devem prender os espirros. Não se devem guardar as coisas que nos saem do corpo, exceto uma: as lágrimas. “Não sejas queixinhas!”. Crescemos a engolir o choro. A deixá-lo todo entalado, barricado, a forçar os maxilares tremidos, todo para dentro, a fazer uma bola, como um balão de pastilha elástica que rebentou dentro da boca, a colar-se às paredes do céu-da-boca, à garganta… “Não se engolem as pastilhas elásticas!” Já o choro…. o incómodo… “Não sejas bebé!”
Na verdade o que seria, se víssemos homens e mulheres adultos a desatarem numa chinfrineira de lágrimas e berraria, a contraírem a cara num pranto, só porque alguém lhes passou à frente na fila, porque lhes entornaram o sumo, porque caiu o gelado ao chão? O pior é quando dentro do corpo de adulto está barricado um bebé que desata numa choradeira.
Por vezes, quando era ainda criança, mas já sem créditos para estourar nas queixinhas, tinha crises, não de choro, mas de raiva, e esbofeteava os peluches. Num acesso de fúria à Ivan, o Terrível, executava uma sessão de pancadaria felpuda, que ficava em sigilo absoluto dentro das portas do meu quarto, já que os pobres peluches, súbditos subordinados e silenciosos, nunca se queixaram.
Em adulta aprendi que não se esbofeteia pessoas. Aprendi também que as palavras podem ser tão pungentes como murros sobre pelúcia, e passei a recorrer aos livros, esses guardiões infindos das palavras, para obter o consolo e reparação e, às vezes até, a solução para as minhas crises… Há quem tome Prozac, antidepressivos, ansiolíticos, parta pratos, grite injúrias, roa as unhas até ao sabugo, corra à beira-mar para desanuviar. Eu? Uso o Livro de Reclamações. Passei a recorrer a um livro clemente, todo-poderoso, rico em misericórdia, para guardar a versão amadurecida das queixinhas que ficaram a envelhecer, os meus queixumes de reserva. Nem sempre nos contextos mais presumíveis. Nem sempre com o resultado mais convincente. Não necessariamente porque encontro um cabelo na comida, um mosquito a boiar no vinho. Sou sensível a distrações e deslizes de etiqueta, até tolero um empregado carrancudo e não provoco um alarido por causa de um copo sujo. Mas se preciso de fazer queixinhas…
A primeira vez que experimentei pedir o Livro de Reclamações foi por ocasião de um almoço de família, numa pizzaria em que me fazia acompanhar pelo meu pai, a minha irmã mais nova e o namorado da minha irmã. Prestável, a empregada de mesa olhou para mim, e disse: “Já não é a primeira vez que a vejo cá!” (O que só por si era estranho, pois eu teria estado naquele restaurante uma vez apenas, cerca de um ano antes, com outra cor de cabelo, mas há pessoas com uma memória visual…). Depois, zelosa, olhou para a minha irmã abriu muito os olhos, exclamativa, e acrescentou: “Sabe… é que a sua mãe é muito simpática!” e, nesse preciso momento… Zás! lançou novamente o olhar na minha direção, a Mãe! (A minha irmã é exatamente seis anos e cinco meses mais nova do que eu. A mãe dela, que por acaso também é a minha mãe, não estava presente.)
Estava um dia de sol maravilhoso, tínhamos escolhido a mesa da esplanada, a temperatura era amena, corria uma brisa agradável, havia vinho verde fresco, acabáramos de enfardar um Prosciutto com Foccacia, e se não fosse a televisão ao fundo a sussurrar o derby Benfica-Sporting, poder-se-ia até imaginar que estávamos a almoçar na Costa Amalfitana. O dia tinha tudo para ser perfeito, até que a empregada decide lançar: “A Mãe é muito simpática!” com um olhar explícito, gritante, evidente, na minha direção.
Levantei os olhos do Prosciutto — eu que sou vegetariana não convicta e estava disposta a ingerir carne processada para pontuar a narrativa italiana. Fiquei imediatamente com uma crise de pontuação. “Perdão?”, perguntei na direção da empregada, “Acha que sou mãe da minha irmã?!?” — Exclamação com Interrogação com Exclamação. Ela: Reticências... Com uma crise de ansiedade! Fogem-lhe os olhos na direção do meu Pai, e olha para mim de novo: “Ah… Pensei que este senhor fosse... o seu...” Reticências. Engole o parentesco. Acha que a minha irmã é minha filha, o que faria do meu Pai o meu “marido”… Engulo as aspas! Encaro a empregada. Olho-a no fundo dos olhos como num western, num pré-duelo-de-pistoleiros: só tensão, nem um vocábulo, nem uma interjeição. Até que disparo um: “Traga-me o Livro de Reclamações!” Imperativa. Afirmativa. Ponto final.
O problema é que esta coisa de ter fé na doutrina das palavras tem os seus revezes. Vi-me assaltada por uma crise de criatividade — um writer's block. O que é que eu iria escrever? Faltavam-me as figuras de estilo, os termos, as alegorias, para redigir a “queixinha”: “Venho por este meio queixar-me de um erro cronológico? Venho protestar um desvio de parentesco? Encontrei um golpe de auto-estima na Foccacia? Uma crise meia-idade a boiar no vinho?”
Engoli o orgulho, estanquei o mau estar nos maxilares com três chicletes entre os molares e vim-me embora a choramingar para dentro. “Mãe! Aquela empregada chamou-me tu”. Não desisti do livro. Tentei pedir o Livro de Reclamações noutras situações de crise. Nas salas de espera de consultórios médicos: “Desculpe, a decoração é de um gosto duvidoso. Tem Livro de Reclamações?”; em centros comerciais: “Desculpe esta luz branca de frigorífico matou-me células cerebrais. Tem Livro de Reclamações?”; em cafés: “Perdão. Está a passar o Baby Shark e agora a melodia vai ficar entalada na minha memória durante 48 horas… Tem Livro de Reclamações?”
Mas não se compara a fazer queixinhas. Não se compara ao consolo grande Mão que facultava alívio imediato, que estancava a perfuração no bem-estar, que limpava as lágrimas e o ranho e as bochechas ensopadas pelo desconforto da realidade. A endireitar os desvios. Por essas e por outras ando sempre com um pacote de pastilhas elásticas na carteira. Para entreter o maxilar em caso de sentir o choro a contrair-me a cara. “Não sejas bebé!”
A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990