O que podem as margens vivas de uma ribeira fazer pelo montado e pela vinha?

A Tapada de Coelheiros, em Arraiolos, aproveitou um projecto de um milhão de euros para promover a resiliência do montado e da vinha. O BioMontado veio aprofundar um trabalho cujo foco é o solo.

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Mário Cruz
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Chama-se "BioMontado — O ecossistema de montado e a vinha" e foi mais uma oportunidade que a Tapada de Coelheiros agarrou para continuar a trabalhar com a natureza numa propriedade de 800 hectares que é um autêntico mosaico de culturas. Na herdade alentejana, às portas da aldeia de Igrejinha, Arraiolos, há 600 hectares de montado (sobretudo sobro, com certificado FSC — Forest Stewardship Council), 50 de vinha, 40 de nogueiras e algum olival. E todas essas culturas, inseridas em agro-floresta, beneficiam dos serviços do ecossistema que a própria natureza presta, contando que se lhe dê um empurrãozinho.

Financiado a 100% pelo Plano de Resiliência e Recuperação (PRR) português, a sua execução terminou no início do ano, mas deixou a melhor semente. "Vamos continuar este trabalho, porque faz sentido", afiança João Raposeira, responsável pela parte agrícola de Coelheiros, o segundo produtor certificado pelo Programa de Sustentabilidade dos Vinhos do Alentejo (PSVA).

Desde que o actual proprietário, Alberto Weisser, brasileiro de ascendência alemã e empresário no ramo alimentar, chegou à Tapada de Coelheiros, em 2015, que esta tem vindo a reinventar-se, numa espécie de regresso às origens. Sim, o Chardonnay foi à vida para dar lugar ao Arinto e a outras variedades portuguesas. Mas não é só isso. Não foi só a vinha que foi reestruturada. Os dois núcleos de nogueiras estão em biológico — toda a propriedade é certificada, de resto —, uma novidade recente que lhe permite à Tapada colocar, coisa rara, 30 a 40 toneladas de nozes biológicas por ano no mercado (nozes que no passado eram secas e descascadas com recurso à queima de gás propano, entretanto substituído por energia da biomassa). Há 1300 ovelhas a "cortar" as ervas em regime de pastoreio holístico nas várias culturas e a "transportar" de umas parcelas para as outras sementes de plantas que têm interesse neste tipo de abordagem. O foco está em ter vida o mais diversificada possível na herdade, e isso começa na vida (e na saúde) dos solos.

"O BioMontado nasceu de uma ideia muito gira e da proximidade que nós temos com a Universidade de Évora. Há uns anos, pensámos fazer um levantamento das espécies cujo ciclo de floração coincidia com o ciclo da videira, para atrairmos insectos auxiliares e para percebermos que espécies se conseguem manter sem grandes cuidados." João Raposeira pergunta se estamos a ver, "ali ao fundo, uma pequena cerca com vários tipos de vegetação". Estamos, parece uma grande confusão.

Aquele emaranhado nas margens da ribeira de Arraiolos, que atravessa a Tapada de Coelheiros e vem de uma barragem com mais de cem anos, construída por António Augusto Dias de Freiras, Conde da Azarujinha e então proprietário da herdade (para armazenar a água das chuvas, que depois era encaminhada por gravidade para as diferentes culturas), é "uma experiência". Em Fevereiro, foram ali plantadas espécies autóctones que atraem insectos auxiliares que darão uma ajuda no combate a pragas como a cicadela (ou cigarrinha-verde).

"Temos aqui salgueiros, freixos, sabugueiros, medronheiros, marmeleiros, pilriteiros, madressilvas, murtas, rosmaninhos, Cistus, por aí fora. Procurámos colocar aqui os diferentes estratos — arbóreo, semiarbóreo e arbustivo — para aprender um pouco com isto. E temos estas experiências espalhadas pela propriedade", guia-nos Raposeira.

Há um ano, as margens da ribeira, agora reabilitada numa extensão de um quilómetro, formavam um autêntico túnel de silvas. "A silva faz parte do sistema", mas é invasora e não deixa vingar mais nada. E o que é preciso é "diversidade, diversidade, diversidade", nota o agrónomo. A silva está lá, mas como "não gosta da sombra" das outras espécies, porta-se bem. "Lentamente, vai desaparecendo. E se estiver assim, também está porreiro, porque vai florindo e também faz o trabalho dela."

O projecto BioMontado permitiu à Tapada de Coelheiros reabilitar 1 Km de margens de ribeira. O objectivo é trabalhar na resiliência do seu montado e das suas vinhas Mário Cruz
O projecto pode ser para o montado e para a vinha mas afecta outras culturas em Coelheiros, como os pomares de nogueiras, ao fundo Mário Cruz
No âmbito do BioMontado, foram ainda construídos açudes para travar a erosão dos solos junto às linhas de água Mário Cruz
A bomba de água que puxa água do furo para os bebedouros onde se hidratam as ovelhas da Tapada de Coelheiros é alimentada a energia fotovoltaica Mário Cruz
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O projecto BioMontado permitiu à Tapada de Coelheiros reabilitar 1 Km de margens de ribeira. O objectivo é trabalhar na resiliência do seu montado e das suas vinhas Mário Cruz

"Dá bagas”, atalha Luís Patrão, enólogo da Tapada de Coelheiros praticamente desde o arranque do actual projecto agrícola e de produção de vinhos. E isso é mais uma ajuda para afastar os estorninhos das uvas de que o técnico tanto precisa para fazer vinhos de topo — quando ali chegou, Luís Patrão encontrou as vinhas cobertas por redes para afastar os estorninhos, que hoje são controlados pelas aves de rapina que regressaram porque voltaram a ter alimento na herdade, depois de a actual administração ter acabado com a caça ali.

Para que as plantas envasadas e as estacas, recolhidas na própria propriedade (é importante que o ecótipo seja local), junto à tal barragem — onde se banha a mais diversa passarada e existe um parque com 150 hectares e cerca de 80 veados e gamos (tímidos, talvez, não apareceram para a nossa reportagem) —, e plantadas nas últimas semanas, vingassem, foi preciso colocar telas nas margens da ribeira. E também aí se experimentou. "Há vários tipos de tela. Onde nos encontramos, a tela é feita de fibra de coco, com um plástico biodegradável [por baixo]. Aqui de certeza absoluta que não vai nascer silva", explica João Raposeira. Dando tempo ao tempo, naquelas margens "há-de nascer uma galeria ripícola", uma ferramenta natural a que cada vez mais empresas atribuem hoje uma importância vital.

O BioMontado também permitiu fazer cinco açudes, numa outra linha de água. Engenheiros biofísicos desenharam, com técnicas de engenharia natural, pequenas represas com o objectivo de travar a erosão dos solos e fomentar o aparecimento de outros microecossistemas. E permitiu a construção de charcos temporários.

Outro instrumento ao serviço do controlo de pragas são os morcegos. Foram instalados ninhos e bebedouros para abrigar "morcegos e passeriformes", rede que é "monitorizada por um biólogo", refere Luís Patrão, explicando que aqueles animais "são bioindicadores, que ajudam a controlar insectos como a cicadela", uma praga que na última vindima chateou produtores de vinho de norte a sul do país. E foram plantadas espécies autóctones também em bosques, bosquetes, afloramentos rochosos e matos, bem como sebes biodiversas junto às vinhas e no montado, com o mesmo objectivo: equilibrar pragas e auxiliares.

Sementes para que vos quero

A Tapada de Coelheiros liderou o BioMontado, com a Universidade de Évora, com quem de resto tem outras investigações em curso, e convidou a Herdade do Mouchão, com um mosaico de culturas muito semelhante e onde as mesmas técnicas foram aplicadas, e a Comissão Vitivinícola Regional Alentejana a integrarem o projecto.

A candidatura era a uma linha de financiamento que visava "capacitar as empresas com novas alternativas para fazer face às alterações climáticas no montado", justifica João Raposeira. E em Coelheiros pensaram: "A nossa vinha está inserida no montado, então porque não trazer o projecto para a vinha também?"

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Luís Patrão e João Raposeira, respectivamente o enólogo e o responsável pelo campo e ecossistemas da Tapada de Coelheiros, fotografados num dos núcleos de nogueiras da herdade alentejana Mário Cruz

Num total de 15 hectares, no âmbito do BioMontado, foram ensaiados três tipos de sementeira directa (é feito um risco no solo apenas com a profundidade suficiente para colocar as sementes, sem mobilizar a terra) em três parcelas distintas de montado: na primeira, uma sementeira normal, digamos assim; na segunda, combinando com mulching feito de uma palha que foi espalhada para aumentar os teores de matéria orgânica e reduzir a erosão; e na terceira com mulching e biochar (ou biocarvão), este último um material sólido rico em carbono, produzido a partir da pirólise de biomassa, e cujas características tornam interessante o seu uso em ecossistemas agrícolas — permite a captura de carbono no solo e melhora as propriedades físico-químicas do mesmo. Nos próximos dois anos, a universidade avaliará uma série de parâmetros — níveis de retenção de carbono, matéria orgânica e micronutrientes, entre outros — para perceber qual das três sementeiras é melhor para os solos e, em última análise, para as culturas.

Apenas o montado foi abrangido pelo ensaio de sementeira directa, mas na vinha e nos pomares de nogueiras também há experiências com sementeira. Escolhem-se diferentes sementes consoante o objectivo seja aportar azoto, estruturar os solos ou potenciar a vida microbiana através das raízes das plantas semeadas. Estas sementeiras são muitas vezes alternadas com cobertos vegetais espontâneos. Uns e outros misturam-se na paisagem agrícola da Tapada. E hoje em dia não se destroçam estes cobertos, é antes acamada (calcada) a vegetação, por se ter percebido que essa espécie de mulching "tem uma importante função térmica".

Uma dessas experiências decorreu na mais recente parcela de Arinto (plantada há um ano), a variedade branca em que a herdade está a apostar, "pela frescura, pela acidez que mantém e por ser uma casta que também resiste muito bem a ondas de calor", explica o enólogo Luís Patrão. A vinha foi plantada em cima de um coberto vegetal integral, o que não é muito comum, e que mistura espécies espontâneas e espécies melhoradoras que haviam sido semeadas ali antes. No tempo em que o foco era nas castas internacionais, o Arinto não representava mais de "0,3 hectares". "Nada."

Hoje, a variedade, plantada um pouco por todo o país, está no centro do projecto enológico ("a ambição é muito grande, fazer vinhos Tapada de Coelheiros, pelo menos", diz o enólogo) e já representa dez dos 50 hectares de vinha. É o Arinto e é o sequeiro — 60% das vinhas da Tapada estão em sequeiro, incluindo a do Cabernet Sauvignon que entra no Tapada de Coelheiros Garrafeira —, sobretudo nos baixos, onde há maior disponibilidade hídrica e onde há uns 80 anos havia arrozais. Sem fundamentalismos, também se dá água a algumas vinhas, por exemplo à Touriga Nacional, mas é sempre "uma irrigação deficitária" e bem informada (no terreno há sondas para medir disponibilidade hídrica no solo, câmaras de pressão que medem o conforto hídrico das plantas e uma estação meteorológica).

Uma vinha não regada demorará sempre "mais um ou dois anos a atingir uma velocidade de cruzeiro", mas este é um modelo "para cem anos", confia Luís Patrão, por oposição "ao modelo de uma vinha no Alentejo, que seria sempre 30 anos [de vida]".

"E o que nós estamos a pisar realmente é a base de tudo isto, o solo", interrompe João Raposeira. E foi por pensar assim que, ainda antes do BioMontado, a actual administração da Tapada encomendou à Universidade de Évora um levantamento de tudo o que existia em quatro pontos distintos da vinha. Foram catalogadas 83 espécies de avifauna, todo o tipo de mamíferos, flora, biota e entomologia, refere a dupla.

Um levantamento feito na Tapada de Coelheiros, no início da actual gestão, em parceria com a Universidade de Évora, catalogou 83 espécies de flora e fauna Mário Cruz
No âmbito do BioMontado, também foram ensaiados três tipos de sementeira directa Mário Cruz
Na Tapada de Coelheiros, há 1.300 ovelhas a 'cortar' as ervas em regime de pastoreio holístico nas várias culturas Mário Cruz
Os pomares de nogueiras de Coelheiros estão agora certificados em biológico Mário Cruz
Chegando a Primavera, os cobertos vegetais de Coelheiros estarão ainda mais floridos, mas em Fevereiro a paisagem já tem várias cores Mário Cruz
A Tapada de Coelheiros tem uma barragem com mais de 100 anos, construída por António Augusto Dias de Freiras, Conde da Azarujinha Mário Cruz
Dos 800 hectares da Tapada de Coelheiros, 600 são de montado, onde há um núcleo com 80 veados e gambos Mário Cruz
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Um levantamento feito na Tapada de Coelheiros, no início da actual gestão, em parceria com a Universidade de Évora, catalogou 83 espécies de flora e fauna Mário Cruz

Não foi só o Chardonnay que foi arrancado (ainda existem plantas da casta francesa, mas o seu destino será provavelmente o mesmo). Também o Merlot desapareceu da tapada. Algum Cabernet Sauvignon deu lugar à Touriga Francesa. "Precisamos de castas de ciclo longo no Alentejo e de castas com este tipo de resiliência", nota Luís Patrão (que também é produtor em nome próprio na Bairrada, onde tem o projecto Vadio). Disso e de porta-enxertos adequados. O "foco" na parte subterrânea da planta (e a que lhe confere protecção contra a filoxera) é tal que Coelheiros tem, inclusive, um campo de "bravos" para criar os seus próprios porta-enxertos.

Uma espécie de infusão

Naquilo que é a agricultura regenerativa, para além de ter as ovelhas a trabalhar "em alta carga em pouco tempo — elas andam felizes da vida, em vez de escolherem comem tudo [no abrolhamento, deixam a vinha, atenção] e os prados vão-se regenerando", explica João Raposeira —, a equipa de Coelheiros está "literalmente a replicar os microrganismos" existentes no solo da herdade. "Por baixo de um sobreiro frondoso, retirámos 30 centímetros de perfil de solo, com diferentes momentos de decomposição de matéria orgânica, e vamos literalmente fazer pão, como antigamente as nossas avós fariam", começa o gestor agrícola.

Como assim? "Juntamos esse solo com melaço de cana-de-açúcar biológico, farelo de trigo e um pouco de água, amassamos e fazemos uma fermentação anaeróbia durante 30 dias. Depois [com pequenas bolinhas dessa massa] fazemos chás e aplicamos ao solo, antes das primeiras chuvas", detalha o técnico, que está há cinco anos em Coelheiros, depois de ter passado por Cortes de Cima e, no Chile, por uma adega de vinhos biodinâmicos (conhecimento que importou para a sobreira).

É um bocadinho como aquele preparado 500 (estrume de gado que vai à terra num corno de vaca) da agricultura biodinâmica? "Sim, mas assim nós temos a certeza de que aqueles microrganismos estão instalados neste tipo de solo, neste tipo de clima, com este tipo de condições, e temos a garantia de que vão ter sucesso e potenciar a biodiversidade que procuramos", atalha Luís Patrão.

Com o trabalho que catalogou a bicharada existente na herdade, a equipa ficou "com uma caracterização do ano zero [2016/2017]", tencionando agora "fazer novamente esse levantamento", partilha João. Luís completa o raciocínio: "Para percebermos a evolução desse património e o impacto da agricultura que estamos a praticar, não é?"

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Luís Patrão, enólogo da Tapada de Coelheiros, junto à sala de provas e loja da herdade, um espaço remodelado há pouco tempo para acolher o enoturismo, que arrancou em 2023 Mário Cruz
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Enoturismo era o nome mais facilmente identificável e ficou, mas na Tapada de Coelheiros os visitantes aprendem sobre outras culturas e há, por exemplo, prova de diferentes variedades de nozes Mário Cruz

Uma agricultura e uma forma de estar no sector que são partilhadas com quem visita a herdade. O enoturismo arrancou em 2023 e, como não podia deixar de ser, também trabalha com a natureza e comunica a sua importância. Em breve, a actividade será "alimentada" pela estufa para horticultura biológica recentemente instalada em Coelheiros — e que também fornecerá parceiros na restauração local. Qual montra, também absorve o azeite de Galega e Picoal produzido na propriedade. Onde já existem percursos marcados mas se pretende, "a médio prazo, adensar a experiência de visita, capacitando os guias com conhecimentos de botânica e outros", partilha João Raposeira.

Para que possam explicar aos visitantes como é que no Alentejo existem afloramentos rochosos cobertos de musgo a lembrar os parques de Sintra. Que no Alentejo há (pode haver) vários Alentejos.

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