Jornalismo. Quem estraga e quem repara o sonho?

Eu era aquilo: caos, ansiedade permanente, coisas em cima da hora. E depois era também a calma e o conforto da antena. E isto mantém-se até hoje.

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Megafone P3 Nuno Ferreira Santos
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Para mim, o “sonho” começou na RUC, há cerca de dez anos. A certa altura, fiquei com a chefia da redação, o que não era mais que garantir que nenhum dos cinco ou seis blocos noticiosos do dia falhava, sabendo que para isso teria de ser eu a fazer tudo aquilo para o qual não houvesse voluntários.

Partilhava a direção com alguém que se sacrificava ainda mais do que eu todos os dias e que nem sequer queria ser jornalista, e por isso não estava a fazer aquilo para ter currículo dali a uns anos. Para ele, não havia qualquer contrapartida, como eu esperava que houvesse para mim quando dali saísse. Para alguns, fazer notícias era giro para os dias desimpedidos; para nós, era como chefiar uma multinacional permanentemente em crise.

Assim conheci alguns dos meus melhores amigos, conheci-me a mim, aos meus limites, ao meu temperamento. E, de repente, a minha profissão estava escolhida sem que desse conta.

Eu era aquilo: caos, ansiedade permanente, coisas em cima da hora. E depois era também a calma e o conforto da antena. E isto mantém-se até hoje.

Quando fui ser jornalista “a sério”, ofereceram-me um estágio. A oferta publicitada não era essa. Disse prontamente que não. Desde logo, por princípio, e depois porque não tinha como pagar as contas, ou viver em Lisboa sem passar fome. Fui trabalhar para esse sítio (com contrato!) e levava para casa menos de 700 euros por mês. Quando soube que o meu editor ganhava à volta de mil, achei que era rico.

O meu trabalho era reescrever notícias e fazer publicidade encapotada. Era mesmo assim, eram publicações para consumo interno de dois setores profissionais, mas não era o meu estilo. Assim como não era o meu estilo marcar os almoços do meu chefe ou ser uma espécie de assistente pessoal quando era preciso. Despedi-me, mas não sem ter uma alternativa.

Surge um convite para ir para uma rádio (uma amiga tinha-me recomendado). Era o recomeço do “sonho”? Nessa altura, já tinha quase garantida a ida para uma agência de comunicação. A oferta surgiu mais ou menos ao mesmo tempo que a da rádio.

Sabia que ia ganhar menos, mas era “a” rádio, a escolha era natural para mim. Assim foi. Mais uma vez, a conversa do estágio. Expliquei que não podia aceitar e que não se adequava ao que pretendiam de mim — que incluía, por exemplo, edição de noticiários. Cederam eles. Mais uma vez, cerca de 700 euros ao final do mês. Mas pensei: é um contrato sem termo e vou fazer o que gosto.

Enquanto estive neste trabalho, vi mais de uma dezena de jornalistas a aceitarem o tal estágio na rádio. Uma parte ia-se embora passados poucos meses; outros prolongavam para novo estágio e iam embora no fim desse; outros, poucos, ficavam com contrato no fim. Habitualmente de um ano. Também havia recibos verdes. E os que ficavam era sobretudo pela necessidade da empresa, velada da ideia de que nem todos fizeram o suficiente para estarem ali, e que aqueles eram os “escolhidos”.

Vi colegas a serem afastados, após estágios curriculares, porque não mostravam “o suficiente” que queriam estar ali, ou porque não tinham a qualidade necessária. Não era verdade e não era justo. Vi colegas a chegarem ao último dia do estágio sem saberem se ficavam ou não, se era para irem trabalhar no dia seguinte. Como se fossem invisíveis.

Há jovens, acabados de sair da faculdade, para quem o “sonho” acabou antes de começar. Como fica a auto-estima de alguém que quer ser jornalista a quem dizem que afinal não vai ser assim tão bom? Ou que deve pensar numa alternativa? É cruel.

Tal como aconteceu com colegas meus, fiquei com a ideia de que não era feita para isto. Como eles, ouvi coisas cruéis e injustas. Sobre o meu trabalho e sobre mim. De resto, reinava o silêncio e ele era indecifrável. O problema de nos considerarem descartáveis, invisíveis, um inconveniente, é que temos que ir lidando com os sinais, decidindo se achamos o mesmo de nós próprios e se nos conformamos, ou se queremos provar que estão errados e fazer mais e mais até que nos notem. Descartei a segunda opção: eu já me sacrificava que chegasse e também já tinha visto outros a tentar a estratégia sem sucesso.

Dois anos depois de me ter despedido e ter trocado de “casa”, vou tentando recuperar essa ideia “brega” e maravilhosa do sonho.

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