Que propósito serve teres a password dele/a?
O comportamento de violência mais legitimado pela população jovem portuguesa é exatamente pegar no telemóvel ou entrar nas redes sociais sem autorização — 37,1%.
“Era um voto de confiança, para ele não desconfiar de mim”, recorda Miguel, lamentando ter trocado os dados biométricos de reconhecimento do rosto e da impressão digital do telemóvel com o seu parceiro, além da chave de acesso.
Quando me contou, não quis acreditar, não era só um número, eram os dados biométricos de outra pessoa no seu telemóvel. Como pode alguém permitir tal invasão da privacidade? Como posso deixar que um namorado, marido, tenha acesso ao meu telemóvel só para que se sinta confortável relativamente à minha fidelidade? Como pode ser isso uma prova ou atestado de conduta? Pior, como podem os adolescentes normalizar esse comportamento, partilhando palavras passe de contas de emails, de redes sociais e pins do cartão do telemóvel?
O comportamento de violência mais legitimado pela população jovem portuguesa é exatamente pegar no telemóvel ou entrar nas redes sociais sem autorização — 37,1%.
No que se refere à legitimação da violência no namoro, a análise por género revela que jovens que se identificam com o género masculino legitimam em maior percentagem todas as formas de violência, comparativamente a jovens que se identificam com o género feminino, demonstra o Estudo Nacional sobre Violência Doméstica da UMAR – União de Mulheres Alternativa e Resposta, destacando-se ainda entre os comportamentos que são agrupados na categoria “Controlo”, o de a outra pessoa proibiu-te de vestir alguma peça de roupa, com mais rapazes a legitimarem essa atitude (39,8%) face a 19,6% de raparigas.
Este estudo, no âmbito do projeto ARt'Themis+ e financiado pela CIG – Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género, mostra ainda outros comportamentos de violência legitimados pela população jovem: procurar insistentemente — 31,1%; pressionar para beijar — 28,6%; insultar durante uma discussão — 27,9%; insultar através das redes sociais/internet — 14,7%; empurrar ou esbofetear sem deixar marcas — 8,9%.
Em Portugal, temos influencers a normalizarem o acesso ao telemóvel do outro, a dizerem que faz parte de uma relação, à semelhança da partilha de uma conta bancária, esquecendo o rumo a que esse comportamento pode levar, de tal forma que, em jeito de rodapé, esses mesmos influencers deixam o alerta: “Mas atenção, não é para andarem a fuçar o telemóvel do outro feitas maluquinhas”.
Recentemente, e a propósito de uma reportagem sobre o tema, uma responsável por uma associação de apoio a mulheres vítimas de violência doméstica, comentava o quão difícil é abordar estas temáticas da liberdade individual, nas escolas: “Quando vamos às escolas alertar para a violência doméstica, já houve pais a contestarem, quando dizemos aos filhos que a mulher, numa relação, não é propriedade do homem.”
O Dia da Mulher, assinalado no passado dia 8 de março, foi o mote para que muitas notícias viessem a público sobre as desigualdades de género. Elas ganham em média menos 16% que os homens, fazem a maior parte das tarefas domésticas, são menos de 10% dos presidentes de câmara. Estão em maior número nas faculdades, mas não progridem na carreira da mesma forma que os homens, no que diz respeito a acesso a cargos de chefia. O risco de pobreza é substancialmente mais elevado entre as mulheres. E mais grave, os dados mais recentes disponíveis pela APAV indicam que no ano de 2023 registaram-se 22 homicídios voluntários em contexto de violência doméstica (17 mulheres, três homens e duas crianças).
O ciúme e a possessividade não são conteúdos de brincadeira de TikTok. É assustador perceber que os/as jovens estão a permitir comportamentos que podem ser a semente dos futuros números negros da violência doméstica.
Acredita: teres a password dele ou dela é só estúpido e não te vai garantir nem fidelidade, nem outro propósito se não o de invadires um espaço que não é teu, ainda que estejas de mãos entrelaçadas.
A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990