Na casa dos outros

Um dia, numa conversa com o meu pai, que sempre foi o imigrante ideal, ele disse-me: “Vais sempre ser uma estrangeira”. Costumava detestar que falasse assim sobre o sítio que aprendi a chamar de casa.

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Até hoje, o meu pai, um ex-imigrante timorense em Portugal, descreve a sua vinda para cá como “a entrada na casa dos outros”, o que traduzido para a sua língua nativa seria algo semelhante a “iha malae nian rai”, em que enquanto visitantes tínhamos o dever de seguir as regras dos donos da casa que sempre tinham razão. Crescer no limiar de dois mundos nunca é fácil. É difícil escolher um lado sem diminuir o outro e encontrar o equilíbrio perfeito entre as duas realidades é quase impossível, mas para o meu pai o melhor para mim seria Portugal.

Fui criada em duas casas, sempre com um pé para dentro e outro de fora, e enquanto filha de imigrantes fui bombardeada com propaganda de como este é um grande país, de como é fulcral me encaixar, fazer um bom nome por mim e aqueles como eu. Quando volto para Timor, sou relembrada de que lá não há condições, de que estar na casa dos outros pode ser difícil, mas seria sempre melhor. Durante toda a minha vida fui relembrada que aqui estaria bem, teria melhores condições de vida, uma casa, um bom emprego e uma vida estável.

Agora moro em Lisboa e nada poderia parecer mais incerto. Sou uma mulher de cor timorense, indiana, cigana, paquistanesa, brasileira que todos os dias vive dos impostos dos verdadeiros portugueses e que desesperadamente merece voltar para o seu país, onde quer que ele seja. Porque ter nascido em Coimbra, falar fluentemente a língua, ter como prato preferido um bom e velho bacalhau com natas, ter a mesma religião de todos os portugueses de bem e ir à missa todos os domingos nunca será suficiente, irá sempre faltar alguma coisa, ainda me vão perguntar no comboio de onde realmente sou.

Um dia, numa conversa com o meu pai, ele disse-me “vais sempre ser uma estrangeira”, o que me atingiu de uma forma profunda. A brutalidade e a franqueza com que o disse, o meu pai, que sempre foi o imigrante ideal, que sempre se mostrou forte mesmo quando o dinheiro era apertado, que nunca levantava a voz para ninguém em público, sempre cuidadoso para dizer as palavras certas nos momentos certos, reconfigurando-se completamente para encaixar e permanecendo num constante estado de desconforto, de nunca conseguir relaxar na própria casa.

Ouvi-lo partilhar, de forma tão honesta, a sua experiência, uma tão diferente da minha, foi algo que me assustou. Pensar no quão difícil foi para ele ter de estudar, trabalhar, sustentar a própria família em Portugal e em Timor, enquanto detestava cada dia neste país, enquanto estava tão mas tão longe de casa, fez-me pensar que talvez as pessoas não compreendam porque é que emigramos. O que advém da necessidade intrínseca de procurar melhores condições de vida, algo transcendentalmente natural em todas as sociedades. Os meus pais emigraram pois precisavam, não porque queriam. São poucos aqueles que emigram porque podem, a grande parte é porque precisa.

Na entrada da casa dos outros, despimo-nos completamente para poder entrar: tiramos sapatos, casacos, calamo-nos, aceitamos aquele prato estranho ao jantar e aquelas vozes que não conseguimos compreender e, ainda assim, nunca é suficiente. Existiu uma preocupação durante todos os anos em que cá viveu, de nunca causar problemas, como se fosse algo que pudesse acontecer, simplesmente porque se assumia que ele iria errar.

Ainda relembra com hostilidade os portugueses frios, individualistas, memórias de décadas de racismo e xenofobia que lhe dizem que nunca vai pertencer aqui, de que deveria voltar para a sua terra. Costumava detestar que falasse assim sobre o sítio que aprendi a chamar de casa. Nunca os vi assim: aquelas pessoas que ele descrevia com tanto pesar eram os meus amigos e os seus pais, os meus professores. A minha mãe seguia-me no argumento de que não era tão mau, tínhamos sorte, tínhamos um tecto, nenhuma dívida no banco, que viver onde vivíamos era um sonho. Afinal, de fora, para toda a família em Timor, éramos verdadeiros reis, mesmo que todas as minhas poupanças tivessem sido utilizadas para pagar a licenciatura de um tio, ou o casamento de uma tia. Para quem vê de fora, é difícil compreender todos os sacrifícios requeridos para entrar na casa dos outros.

Se hoje vejo notícias sobre manifestações políticas carregadas com discursos de ódio com teor xenofóbico, relembro o meu pai e o seu cepticismo para com os “malaes” e entristece-me ter de admitir que talvez ele tenha razão, que talvez vá sempre ser uma estrangeira.

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