Mercado de carbono: greenwashing ou protecção da natureza? “O diabo está nos detalhes”

O diploma que regula o mercado voluntário de carbono foi promulgado no final do ano passado. O que falta agora para o mercado entrar em funcionamento? E como prevenir o greenwashing?

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Em 2023, em pleno ano de denúncias sobre as falhas dos mercados voluntários de carbono internacionais, o Governo português abraçou o desafio e anunciou a criação de um mercado voluntário de carbono nacional, com foco na recuperação de ecossistemas florestais. O diploma foi aprovado em Conselho de Ministros no final de Novembro e promulgado por Marcelo Rebelo de Sousa nos últimos dias do ano passado.

O que falta, então, para o mercado entrar em funcionamento? Quase tudo: ainda não foram aprovadas metodologias para contabilizar as emissões dos projectos, ainda não se sabe ao certo como funcionará a certificação e acompanhamento dos mesmos e ainda está por construir a plataforma onde os créditos de carbono serão transaccionados. Fica por responder a grande questão: ficarão resolvidas as preocupações com greenwashing (falsas alegações ambientais) levantadas pelas associações ambientalistas?

“Se for bem pensado e bem executado, poderá ter alguns benefícios”, afirma Carolina Silva, da associação ambientalista Zero. Mas há um senão: “O diabo está nos detalhes, e os detalhes ainda não são conhecidos”, afirma a especialista da Zero em clima e energia. “Ainda não sabemos absolutamente nada sobre as metodologias.”

A Agência Portuguesa do Ambiente (APA), em colaboração com a Agência para a Energia (ADENE), “está a trabalhar no desenvolvimento das primeiras metodologias de carbono, dos critérios para a submissão de metodologias e de um portal informativo”, explica o Ministério do Ambiente e da Acção Climática (MAAC), em reposta ao PÚBLICO.

Conforme previsto no decreto-lei, descreve a tutela, estas metodologias vão passar por uma Comissão Técnica de Acompanhamento (cujo processo de designação está em preparação) “e por um processo de discussão pública, antecedendo a sua aprovação e divulgação pela APA”. Para a Zero, é “altamente positivo” que seja criada esta comissão, se bem que não seja garantido que a sociedade civil e as ONG de ambiente (ONGA) e de desenvolvimento (ONGD) tenham lugar neste organismo.

“O sector privado ou outras entidades públicas podem igualmente submeter as suas metodologias desde que cumpridos os princípios fundamentais subjacentes ao mercado”, acrescenta ainda o MAAC. O Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), por exemplo, estará a acompanhar as metodologias com foco no sector florestal.

Afinal, para que precisamos de um mercado de carbono?

O mercado voluntário de carbono permite a transacção de “créditos de carbono”, que são gerados a partir de projectos que reduzem ou evitam a emissão de gases com efeito de estufa, estimando-se a quantidade de emissões de gases com efeito de estufa (GEE) que esses projectos conseguem mitigar através de metodologias específicas. Estes créditos podem então ser comprados por empresas ou outras entidades.

Para quem promove os projectos, os mercados de carbono são essenciais para o financiamento de iniciativas que não poderiam ser feitas sem essa fonte de financiamento. Aliás, no que toca aos ecossistemas marinhos e costeiros, os chamados créditos de “carbono azul” que passaram a ser uma possibilidade na versão final do diploma podem vir a ser essenciais para travar a perda histórica significativa destes ecossistemas, alerta Sofia Barbeiro, gestora de projecto da Gulbenkian.

Para a Zero, contudo, este mecanismo, da forma como foi apresentado, “parece ser uma forma de colmatar deficiências no que diz respeito a instrumentos públicos”, como os programas de desenvolvimento rural ou a recuperação de territórios afectados por incêndios, que são precisamente as áreas que terão prioridade na promoção do mercado de carbono. “É colocar no mercado a responsabilidade da acção climática que cabe ao Estado”, nota Carolina Silva.

Por oposição aos mercados voluntários, existem também mercados regulados, como é o caso do Comércio Europeu de Licenças de Emissão (CELE, ou EU ETS, na sigla em inglês), que procura aplicar o princípio do “poluidor pagador” a determinados sectores mais poluentes e cujos limites os Estados-membros são obrigados a cumprir. Ainda assim, não está isento de críticas: associações como a Zero consideram estes créditos do CELE uma “licença para poluir”, alertando para as licenças gratuitas atribuídas pelos países a algumas empresas (em teoria para evitar que estes custos as levem a abandonar o país), que consideram “borlas” que atrasam a acção climática.

Também o Acordo de Paris prevê, no artigo 6 (dedicado à “cooperação internacional”), que possam ser transaccionados créditos de carbono entre países, mas esse mecanismo nunca foi concretizado. Aliás, no final da COP28, a cimeira do clima das Nações Unidas que teve lugar no Dubai, os países quase chegaram a um acordo sobre esta matéria, mas a tentativa acabou gorada pelas dúvidas não resolvidas no que toca à integridade desse mecanismo de transacção de créditos (incluindo da União Europeia, que exige normas compatíveis com as regras apertadas do seu CELE).

Como vai funcionar, afinal?

Ainda é uma incógnita quando é que o mercado em Portugal começa a funcionar, tendo em conta que, à excepção do diploma promulgado pelo Presidente da República, ainda está tudo por fazer, incluindo uma série de “diplomas administrativos” por publicar e metodologias técnicas por construir.

A expectativa do Ministério do Ambiente e da Acção Climática é que o lançamento da plataforma de registo de projectos e transacção de créditos que é essencial para que o mercado possa, efectivamente, existir possa acontecer já em 2024. “Os trabalhos de desenvolvimento da plataforma de registo de crédito encontram-se em curso, revestindo-se de elevada complexidade técnica”, explicou o gabinete do MAAC, em resposta ao Azul.

Questionado pelo PÚBLICO sobre o que falta em concreto, o MAAC devolveu uma checklist para as próximas etapas, que inclui definir os critérios para a qualificação de verificadores independentes dos projectos de carbono e publicar os requisitos gerais da plataforma de registo de projectos de carbono e a informação a disponibilizar para efeitos de registo dos projectos e emissão dos créditos. É preciso também definir as condições e capitais mínimos associados aos seguros a que podem recorrer os promotores de projectos para efeitos de cobertura de eventuais situações de reversão de emissões sequestradas; publicar o montante das taxas e respectivas condições de aplicação; e, por fim, criar a comissão técnica de acompanhamento para efeitos de desenvolvimento e avaliação de metodologias de carbono.

Preocupações com greenwashing

Nos mercados voluntários de carbono, as empresas compram os chamados “créditos de carbono” por iniciativa própria, normalmente integrada em estratégias de sustentabilidade, ou, na pior das hipóteses, para mascarar as emissões não mitigadas (ou seja, para o chamado greenwashing). “O mercado voluntário de carbono permite às organizações compensarem ou neutralizarem as emissões de gases do efeito estufa”, explica Raul Xavier, da Associação Natureza Portugal (ANP/WWF), sublinhando que o foco deve estar nas emissões “que são de difícil redução”.

Contudo, também aqui o diabo está nos detalhes. Uma das diferenças entre o texto que foi posto em consulta pública e o que foi promulgado pelo Presidente da República é a supressão de um artigo que definia que, para comprar créditos de carbono no mercado voluntário nacional, as empresas teriam de comprovar que tinham planos de redução de emissões. Esse artigo, defendido pelas associações ambientalistas, foi muito contestado pelo sector privado, tendo em conta a burocracia que poderia trazer.

Agora, sem esse requisito, as empresas vão poder participar no mercado voluntário de carbono para fazerem a compensação de emissões, também conhecida como offsetting. É normalmente através da compra de offsets que as empresas baseiam afirmações como “produto neutro em carbono” (que não correspondem, necessariamente, a um esforço para emitir menos carbono). Para Carolina Silva, da Zero, “isto dará azo a contribuições não a favor da acção climática, mas a compensações, desviando o foco daquilo que deveria ser prioritário: a redução de emissões nas fontes”.

Uma revolução verde por via da regulação?

A possibilidade de utilizar créditos para compensação de emissões, mesmo por empresas que não tenham uma estratégia de redução de emissões, não preocupa Angela Lucas, co-fundadora do Fundo LAND (Life And Nature Development), que tem a seu cargo a área da sustentabilidade e é também investigadora na área da sustentabilidade empresarial. “A legislação tem de ser vista como uma peça maior do puzzle que está a ser definido a nível europeu no Pacto Ecológico”, descreve.

Neste momento, está em andamento uma série de iniciativas legislativas a nível europeu, como os regulamentos e directivas a nível de alegações ambientais (green claims, que é votada esta semana no Parlamento Europeu), obrigatoriedade de reporte a nível das empresas e novos requisitos de responsabilidade corporativa.

“Eu gostava de ser mais optimista, mas não estou a ver as empresas a alterarem o rumo de hoje para amanhã, ou de hoje para 2030”, comenta Carolina Silva, da Zero. Mais perigoso ainda, considera a activista, “este mercado vem contribuir para a percepção de que estamos a fazer o suficiente, e não estamos”, afirma, ecoando os alertas deixados por diversos relatórios publicados pelas Nações Unidas nos últimos meses e anos.

Para Angela Lucas, a palavra-chave é compromisso. Será preciso abraçar este “paradoxo do clima” (engolir sapos, dirão alguns), como aconteceu ao fazer-se uma COP num “petro-Estado”: “Isto não se faz só com os Estados que estão a fazer bem”, reforça. “A crítica é legítima, e deve mesmo ser questionado”, sublinha a investigadora. “Temos de exigir sempre o mais possível, mas não nos devemos frustrar por ficarmos aquém.”

O mesmo serve no que toca às empresas que querem aceder ao mercado voluntário de carbono. “É importante fazer a crítica dos offsets, à ideia de pagar créditos para continuar a poluir”, reconhece, “mas não vamos fazer isto se não chegarmos àqueles que vão ter lucro”. “Vamos olhar para isto de forma séria, separar o trigo do joio, pôr a funcionar como deve ser”, completa. “Não podemos deitar fora o bebé com a água do banho. Isso também é um risco.”