Sete anos antes do 25 de Abril: eu vi uma luz ao fundo do túnel

O golpe de 16 de Março não foi pensado como ensaio do 25 de Abril, mas acabou por ser um exercício útil para corrigir falhas técnicas e afinar a base política do Movimento dos Capitães. Foi há 50 anos

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O 25 de Abril não caiu do céu de pára-quedas. Nem foi importado da guerra da Guiné, assim sem mais nem menos. Tenho escrito que o processo do 25 de Abril é um rio com muitos afluentes, descortinei quatro, mas só trato de um, que vi nascer em 1967 no Regimento de Infantaria 5 (RI5) de Caldas da Rainha. Chamei-lhe “o primeiro afluente”, refiro a fita do tempo mas não só, como há-de ver-se. O meu testemunho vale quanto vale o meu crédito profissional e a minha vivência; não resulta de citações nem bibliografias eruditas ou pseudo; é uma fonte directa do que eu vi e com quem convivi. Nem sequer vale a pena discutir-se a validade da “história oral”. Tudo começa por um primeiro testemunho, que pode tornar-se guião ou pista e carreiro humilde para um aprofundamento crítico, capaz de resistir à prova de “falsabilidade”. Conheço os melindres do processo de investigação e o rigor epistemológico que se exige para acautelar da intromissão do self a verdade tangível, no próprio acto de ver os factos e de os narrar. Mas, se eu não fosse um insider nesta história, não poderia escrevê-la por dentro, objectividade emotiva que sinto e vejo e sei.

O cenário e os actores

O autor apresenta-se primeiro: como testemunha é actor; como narrador desdobra-se em comentador, dialogando com o público. Em 1966 fui parar por acaso ao Regimento de Infantaria 5, nas Caldas da Rainha, como capelão da Unidade. As voltas que a vida dá! Alguns leitores talvez me reconheçam como um dos “cronistas da Revolução”, título honroso que se agradece ao general Pezarat Correia, por causa de uma trilogia sobre o 25 de Abril que escrevi com Cesário Borga e Mário Cardoso, a saber, O Movimento dos Capitães e o 25 de Abril (1974), Portugal Depois de Abril (1976) e Abril nos Quartéis de Novembro (1979). O meu nome já antes era conhecido como jornalista de O Século e do Diário de Lisboa, além de outras andanças que não vêm ao caso.

Em 1966 o RI5 era um regimento fundamental do Curso de Sargentos Milicianos (CSM) com seis companhias de instruendos, além das duas companhias de soldados “prontos” (Formação e Caçadores) — ao todo mais de 1200 rapazes —, que fui chamado a assistir. Cada companhia tinha a sua caserna com mais de 100 homens. Os instruendos eram “mancebos” que ao completarem a idade do serviço militar obrigatório (20 anos) haviam completado o ensino secundário mas não tinham entrado no ensino superior. Já agora, lembre-se que os estudantes universitários geralmente não eram conscritos para o serviço militar antes de terminarem a licenciatura e só então eram chamados para o Curso de Oficiais Milicianos (COM), passando a integrar o chamado Quadro de Complemento (QC).

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Da esquerda para a direita, os jornalistas Cesário Borga, Avelino Rodrigues e Mário Cardoso DR

A princípio eu não pertencia à “família militar”, não tinha farda nem galões e também não tinha ordenado, o que me dava um certo ascendente moral (ou eu pensava que sim). Só mais tarde é que fui graduado em tenente, facto consumado e sem consulta prévia. Lembro-me daquele dia 8 de Setembro de 1966, quando entrava a porta de armas. A sentinela empertigou-se, bate a pala ombro-arma e diz: “O nosso sargento da guarda quer falar-lhe.” Tocou à campainha e vem-me o sargento: “O nosso oficial de dia quer falar-lhe.” E este: “O nosso comandante quer falar-lhe.” Assim mesmo, a disciplina hierárquica ritualizada, espinha dorsal do corpo militar.

Bati à porta do comandante, o coronel Serrano levanta-se pressuroso, dá meia volta à mesa e avança com um abraço vigoroso e três palmadas nas costas: “Parabéns!” Já vinha atrás dele o segundo comandante, mais um abraço e três palmadas nas costas: “Parabéns!” E depois veio o major do comando do CSM, o mesmo ritual. Deixei-me abraçar, nem tempo me deram para reagir, só depois: “Senhor comandante, estou muito comovido com os parabéns e os abraços, mas já agora faça favor de me dizer porquê.” O comandante ficou mais espantado do que eu: “O quê? Então não leu a Ordem do Dia [OD]?” E eu: “Entrei agora à porta de armas, e a sentinela mandou-me falar ao sargento da guarda, e o sargento enviou-me para o oficial de dia, e este mandou-me para o nosso comandante, e eu cá estou no seu gabinete.” Deu-me a ler a OD: capelão graduado em tenente. Mais uma rodada de abraços: “Parabéns outra vez, agora já é da família militar, vem na Ordem do Dia”! Passei a receber ordenado compatível, e lá tive de comprar a farda, que raramente usava.

Em 1966 eu estava nos meus irreverentes 30 anos, um ar contestatário mas sensato e um assumido espírito arejado — que me levou por exemplo a suprimir a missa campal na parada dos juramentos de bandeira — e, vá lá, algum sucesso na contenção dos excessos militaristas, que nunca faltam num quartel. É um auto-retrato que talvez explique um certo prestígio no quotidiano do Regimento.

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Avelino Rodrigues foi jornalista de O Século, do Diário de Lisboa e da RTP, entre outros meios de comunicação social Daniel Rocha

O corpo de oficiais era constituído maioritariamente por três dezenas de alferes e tenentes do Quadro Permanente (QP). Eles tinham saído dos últimos cursos da Academia Militar, conheciam-se todos, e esta circunstância inspirava o “espírito de corpo” e estimulava o brio de cada um, em sã competição profissional.

Ora, eu também tinha a meu cargo a freguesia dos Vidais, a sete quilómetros do quartel. A casa paroquial passou a ser o ponto de encontro do nosso grupo de jovens oficiais do “Cinco”, para jantaradas e discussões pela noite dentro. Ao contrário da messe de oficiais, onde as críticas ao regime e a questão colonial apenas se balbuciavam em voz baixa, acontece que naquele ambiente recatado podíamos falar à vontade.

Nesse ano de 1966, o tenente Vasco Lourenço (que comecei a observar como líder natural do grupo) foi nomeado responsável da sala de oficiais. Era ele que afixava ao balcão do bar da sala de oficiais um convite enigmático convidando os interessados a participar numa sessão dos “Cursos de Cristandade” em casa do capelão (logo eu, que até criticava aquele método espanhol de conversão apressada, que estava na berra, semelhante a uma Opus Dei de massas, que eu considerava uma espécie de lavagem ao cérebro!)

Mas para esta história poder continuar, complete-se o elenco de protagonistas e figurantes que irão aparecendo em cena, a saber, o general Spínola e o seu séquito de spinolistas, o grupo de oficiais milicianos que não querem ser “espúrios” e, contracenando com ambos, o nascente “movimento dos capitães”.

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Avelino Rodrigues em Vidais, em 1966 DR

A primeira vez que as línguas se soltaram

O grupo cresceu rapidamente, já éramos mais de 20; a casa tornou-se pequena e tivemos de mudar para a Matoeira, um lugarejo a três ou quatro quilómetros do quartel, onde entretanto eu tinha convencido o padeiro António Jacinto a improvisar um pequeno restaurante para nosso refúgio recatado, na adega anexa à padaria. “Deixe tudo como está, mesmo as teias de aranha nos tonéis, mas limpinho, só o chão de terra batida tem de ser cimentado (porque é muito frio de inverno) e é preciso um grande grelhador no pátio, e já está.” A obra fez-se num mês, e assim passámos a ter um “restaurante exclusivo”, que podíamos reservar só para nós, quando entendêssemos, era só dizer.

Um recanto de rústica simplicidade, um lagarzinho antigo com um tronco de pinheiro de través e uma pedra pendurada na ponta, a servir de prensa romana, e uma mesa comprida no meio dos tonéis, tudo aberto para um pátio espaçoso de patos e galinhas, onde cabiam os nossos carros todos “clandestinamente”. E clientes? Tranquilizei-o, que deixasse isso a meu cargo, só era preciso que oferecesse o jantar da estreia, 20 quilos de carne para 20 convidados! “Um quilo de vaca por cabeça?!”, espantou-se o Jacinto pagador. “Vai ver que não sobra nada pela noite dentro”, afiancei. Respirou quando me ofereci para apresentar a minha especialidade culinária, aliás única: uma espetada em sangue à moda da Madeira em pau de louro verde, sem molhos, só uma pitada de sal sobre as brasas, talvez umas batatas fritas, talvez uma salada simples. Mas o melhor era apenas carne e vinho e pão, mais nada, como lá na ilha, era sucesso garantido. O Jacinto aprendeu a receita rapidamente, e em breve me libertou da tarefa.

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António Jacinto, padeiro de Matoeira, Vidais, em 1967 e depois do 25 de Abril DR

Soltavam-se as línguas e falava-se de tudo, sem tabus. A dada altura, eu parava de beber, para poder conduzir a conversa. Da minha vida anterior trazia a prática das reuniões de grupo e sabia como conduzi-las a jeito: deixar as pessoas falar, cabendo-me apenas alimentar a fogueira com algumas “buchas”, para que a discussão não parasse ou pudesse descambar.

De religião falava-se pouco, apenas uns remoques contra o bafio das sacristias e as pequenas histórias do tradicionalismo bacoco, mas nesse ponto eu não podia estar mais de acordo.

O tema mais quente era a queda da Índia dita portuguesa e consequente perseguição ao general Vassalo e Silva e aos militares que o regime culpara da derrocada imparável (“só regressam heróis ou num caixão de pinho” — teria cominado o ditador ou assim se dizia, para o caso tanto faz). E mais: o assassínio de Humberto Delgado (“se fazem isto a um general, o que não fariam a nós”?) e as peripécias da “revolta da Sé” em 1959 e do “golpe de Beja” em 1 de Janeiro de 1962, destes assuntos não sabiam nada, eu é que lhes contei. E por aí adiante, o desvio do paquete Santa Maria com destino a Angola, com o capitão Henrique Galvão apelando às colónias “libertem-se, que nos libertam”; e mais, o pronunciamento do general Botelho Moniz em Abril de 1961, cujo falhanço tramou Costa Gomes (ainda não tinha descoberto a rolha); e a “boca” de Salazar arrastando o país para Angola “rapidamente e em força!”; enfim, a forma como o nosso chefe tinha depurado as Forças Armadas, tornando-as coniventes com o Governo etc. etc. Balbuciando apenas, começavam a discutir o pensamento único que Salazar tinha imposto à nação: “Não discutimos a pátria e a sua história; não discutimos a autoridade e o seu prestígio; não discutimos a família e a sua moral.”

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Ruínas da padaria da Matoeira, local das reuniões secretas do grupo de oficias tenentes do RI5 em 1967 DR

Em boa verdade, não se ouvia uma palavra contra a guerra que todos consideravam destino normal de um militar de carreira. Mas a contestação da “bandalheira” das altas chefias era um plano inclinado para a revolta deontológica duma juventude que “sabe tudo” e não acredita nos velhos generais. Ainda não falavam da “brigada do reumático”, mas haviam de lá chegar. A reivindicação corporativista veio a surgir de facto, mas foi seis anos mais tarde.

Aliás, não era preciso ser de esquerda para contestar a política colonial. Isso viu-se logo em 4 de Janeiro de 1961, aquando da repressão dos algodoeiros da Baixa do Cassanje. Conhece-se finalmente o relatório do comandante da 2.ª Região Aérea de Angola, brigadeiro Pinto Resende, no qual se lê: “Os concessionários que são os ricos só têm benefícios, enquanto os agricultores que são os pobres, os desgraçados burros de carga dos pretos, são quem arrasta com todos os prejuízos. Não estamos dispostos a morrer para servir ganâncias e egoísmos de senhores que têm responsabilidades no regime político em que vivemos” (apud Fernando Valença in As Forças Armadas e as Crises Nacionais, ed. Europa-América, 1977). Esta citação documenta que desde o começo da guerra existiram razões político-sociais na contestação militar.

Fecho o parêntese e volto aos nossos encontros da Matoeira.

De 1966 a 1968, os jantares do grupo continuavam frequentes, dois anos ou pouco mais. Um dia inscreveu-se na lista do bar de oficiais um capitão veterano recém-chegado às Caldas com experiência de guerra na Índia, em Angola e em Moçambique. Contava com alguma mágoa histórias recalcadas do terreno de combate, que escandalizavam a rapaziada. “Se fosse eu, não fazia”, reagiam todos. E ele: “Meus amigos, eu não estou assim tão certo, no cenário da guerra às vezes a gente enlouquece…” Mas eles persistiam na repulsa e até lembravam Nuremberga e de como nunca mais um militar se poderia desculpabilizar de atrocidades, alegando obediência a ordens iníquas. “E se perdermos a guerra? E se ficarmos prisioneiros?”

Falava triste o veterano, meias palavras prudentes. Mas fez-me recordar a narrativa bruta, sem filtros, que ouvi da boca dum matarruano das berças, ainda meio atordoado pela guerra do mato, que aqui reproduzo de cor, como ele a desembuchou. Ainda estou a vê-lo a sentar-se impante diante de mim, com o seu troféu de guerra sobre a minha secretária, um frasco imundo com uma mixórdia lá dentro: “Veja, foi tudo o que eu ganhei no Ultramar.” Tive um pressentimento: “Tira já essa porcaria daqui!” O rapaz não se desmanchou. “O pelotão tinha caído numa emboscada no mato, alguns camaradas ficaram feridos, carregámos sobre os turras com rajadas de G3, eles fugiram como macacos mas deixaram um gajo meio morto, então o cabo deu-lhe um pontapé na cabeça e nós caímos sobre ele com as nossas facas de mato, cortámos-lhe os dedos e a ponta do nariz e a picha ainda quente, todos queriam era os tomates dele, mas o cabo deu um berro (pára, cabrão, pára, os tomates é para mim). Calhou-me esta orelha para amostra, lá na companhia deram-nos uns frascos com formol, e pronto, a minha madrinha de guerra levou-me a Fátima agradecer a Nossa Senhora, eu queria deixar o frasco na capelinha das aparições, mas a madrinha ralhou-me e não deixou, agora vou mostrar isto ao meu pai, que é um bêbado desgraçado mas vai à missa ao domingo e até se confessa na Páscoa da Ressurreição. E pronto, já está!”

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Coluna de soldados portuguesa num teatro de guerra das ex-colónias: “E se perdermos a guerra? E se ficarmos prisioneiros?” DR

Palavras para quê? Resta-me o conforto de pensar que, entre este grupo de oficiais do RI5, apenas um, que eu saiba, se terá envolvido em atrocidades da guerra.

Naquele grupo contestatário talvez só eu me tenha apercebido de que, se esta experiência se replicasse noutros grupos militares, o regime teria os dias contados. Só não sabia quando, mas quase apostava que o mesmo contexto (a guerra e a ditadura) aliado à uniformidade dos agentes dispersos (os militares descontentes) provavelmente produziria o mesmo efeito. Não direi o mesmo, mas análogo ou parecido, porque as circunstâncias e os agentes não são uniformes como os números, são variáveis, e as pessoas muito mais. E foi assim que, sete anos antes do 25 de Abril, eu vislumbrei uma luz ao fundo do túnel.

Quando o capitão bate o pé ao general

Ao longo de 1967/68 todo o grupo dispersou pelos matos africanos, mas o Vasco teve de adiar o embarque, por razões burocráticas. Entretanto, mais se irritava com a “bandalheira” das chefias, a ponto de encarar a ideia de abandonar a carreira militar. Era preciso procurar-lhe um emprego compatível. Já estava tudo tratado quando ele me aparece a desistir, por ter sido nomeado para a Guiné. Dizia-se incapaz de recusar a nomeação, porque a Guiné era o mais perigoso dos teatros de guerra e não queria pôr em xeque a sua coragem pessoal. Lá foi, sem mais motivação que o voto de voltar sem baixas entre os seus homens. E escreveu um livrinho No Regresso Vinham Todos; fomos mostrá-lo ao Urbano Tavares Rodrigues, que se disse surpreendido, “vai ver que não o deixam editar”, e de facto o livro só foi publicado em 1975, já a PIDE não assaltava as livrarias.

De regresso da comissão na Guiné, Vasco Lourenço vinha de candeias às avessas com o general Spínola, que acusava de demagogia, de prepotência e de desconsiderar os oficiais que não lhe fizessem a corte, interessado acima de tudo com o seu projecto pessoal de conquistar a Presidência da República, fosse de que maneira fosse. E contou-me de uma certa reunião em Bissau, em que teve de fazer frente ao comandante-chefe perante quatro centenas de oficiais. É que Spínola dava prioridade à componente política da guerra, ao passo que o nosso capitão não podia fugir à responsabilidade de segurança militar. Mais tarde pus-me a reflectir até que ponto uma incompatibilidade de carácter pessoal pode determinar a História.

Por essa altura, já eu tinha dado uma volta à vida, em nome da revolução cultural que atravessava a Igreja Católica e punha em xeque a hierarquia dos bispos portugueses, “cães mudos” — o nome lhes fica bem, já assim lhes chamara um Papa sem papas na língua. Descobri então que a minha luta pelo aggiornamento de João XXIII tinha algum paralelismo com a revolta dos jovens militares.

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Vasco Lourenço (de óculos escuros) vinha da Guiné de candeias às avessas com o general Spínola, que acusava de demagogia, de prepotência e de desconsiderar os oficiais que não lhe fizessem a corte Arquivo Vasco Lourenço

Em Setembro de 72 convidei o Vasco Lourenço para o meu casamento e calhou apresentar-lhe o Manuel Serra, meu herói da revolta da Sé e do assalto ao Quartel de Beja. “Anda cá, Manuel, quero apresentar-te o meu amigo capitão Vasco Lourenço.” Já os braços se estendiam para um aperto de mão, quando Serra se retrai: “Capitão? Era o que mais me faltava!” E eu atalhando: “Deixa lá, é capitão mas é dos nossos!” Vasco, meio triste: “Capitão sim, mas por pouco tempo, vou-me embora não tarda.” E logo o revolucionário, peremptório, tratando-o já por tu: “Se és dos nossos, agora é que não sais, vamos precisar de ti.” Réplica do Vasco: “Olha lá, então tu saíste há pouco da prisão da PIDE em Caxias, apanhaste onze anos, e já te queres meter noutra?” Serra, empolgado: “Mais do que nunca, assim que possa!”

Este diálogo gravou-se-me na memória de jornalista atento, mas o mais interessante é que Vasco Lourenço o tem recordado, vezes sem conta, por escrito e de viva voz nestes 50 anos, prova mais que evidente do seu impacto motivador.

A imprensa como arma de guerra

Faço aqui um da capo para voltar ao curso da conspiração, sem esquecer o aproveitamento corporativista que o Movimento fazia dos famigerados decretos do ministro da Defesa e do Exército, general Sá Viana Rebelo, que favoreciam desajeitadamente os oficiais milicianos do quadro de complemento (QC) em prejuízo dos oficiais do quadro permanente saídos da Academia Militar (QP). Os decretos serviram de isco para aliciar os menos motivados. Com Victor Alves, Melo Antunes e outros mais ponderados, Vasco Lourenço enquadrava a linha moderada, como estratégia segura que desse tempo ao tempo para o amadurecimento da maioria, através de procedimentos participativos que alargassem a base de mobilização e evitassem rupturas. Não se tratava de uma táctica elaborada, ele era um beirão dos sete costados e praticava a lição do bom senso ancestral, como outro amigo meu, revolucionário paciente e avisado, que nesses anos de controvérsias inadiáveis simplesmente observava: “Quando a família vai à rua passear, há que ajustar a passada ao ritmo dos mais pequenos.”

Em Agosto de 1973, o Vasco vem entregar-me ao Diário de Lisboa o primeiro documento colectivo do Movimento dos Capitães, por sinal secundado por outra cópia trazida por Carlos Fabião, meu conhecido da Guiné, que nessa altura frequentava o Estágio para Oficial Superior em Pedrouços. Não sabiam um do outro. O papel era a desmontagem dos decretos de Sá Viana, que, pretendendo resolver a falta de oficiais do QP, acabou por prejudicá-los ainda mais. Entreguei o material a Amadeu Lopes Sabino, recém-liberto de Caxias, com quem eu partilhava a minha mesa de trabalho, e elaborámos juntos a primeira notícia da contestação militar que, em conivência com Fernando da Costa, responsável da paginação, publicámos em manchete de primeira página, a 14 de Agosto de 1973, obviamente mutilada pela censura. Faltavam 23 dias para a primeira reunião do Movimento dos Capitães em Alcáçovas/Évora, que viria a realizar-se no dia 9 de Setembro do ano da graça de 1973, onde o Movimento realmente tomou nome. Faltavam 229 dias para 25 de Abril de 1974.

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À esquerda, primeira notícia sobre a contestação dos capitães, que foi manchete do Diário de Lisboa, em 14 de Agosto de 1973. O texto de Avelino Rodrigues e Amadeu Lopes Sabino foi mutilado pela censura; à direita, notícia no mesmo jornal, um ano depois, sobre a forma como a censura rasurou esse texto

Nessa altura, a redacção do Diário de Lisboa funcionava na Rua Castilho, ao lado do Parque Eduardo VII. Ali perto, na Rua Rodrigo da Fonseca, era a Pastelaria Ritz, onde o Vasco Lourenço abancava para encontros com os camaradas do quartel de Caçadores 5 e também comigo e com o meu amigo Manuel Serra, que um dia lhe criticou a displicência com que os conspiradores olhavam para a PIDE. Ele respondeu que tinha boa pontaria e que era capaz de colocar uma bala onde quisesse: “Se os pides forem muitos até podem lixar-me, mas o primeiro tiro será meu.” A Ritz era um ponto de encontro e aliciamento, ali nas barbas do Quartel-Mestre General, onde uma tarde rebentou uma bomba das Brigadas Revolucionárias, que nos fez debandar do café. Uns dias depois, Serra levou-nos a abordar o problema da acção directa armada, criticando aquela operação improvisada e sustentando que “um revolucionário não é um terrorista” e tem de evitar o sacrifício de cidadãos inocentes. (Nesse tempo não conhecíamos a expressão “efeitos colaterais”).

Um dia, o Vasco convidou-me a dar uma volta de carro, que assim ninguém nos ouvia. O caso não era para menos: o Movimento dos Capitães tinha sido contactado por oficiais adeptos do general Kaúlza de Arriaga, que vinham propor uma conjugação de esforços para um golpe de Estado e que até já tinham o apoio da Oposição Democrática. Vasco não gostava de Kaúlza, mas essa do apoio da Oposição é que era mais desconcertante. Eu disse-lhe que não acreditava nessa “boca estuporada”. Pediu-me que indagasse entre os meus amigos. Corri a casa de Manuel Tengarrinha, com quem eu colaborava como bom compagnon de route, e fui à procura do Vítor Wengorovius. Ambos rejeitaram a atoarda, considerando-a perigosíssima. Vasco reuniu os companheiros para analisar a situação. No dia seguinte, Carlos Fabião denunciava a “kaulzada”, perante os majores do Estágio para Oficial Superior, em Pedrouços, convocando-os a agir nas suas Unidades para abortar o golpe. Assim se fez, e o caso ficou arrumado.

Na Guiné, Spínola era foco de interesse da imprensa internacional. Os jornais portugueses já quase todos tinham feito a peregrinação a Bissau, excepto o República e o Diário de Lisboa, considerados de esquerda. Eu próprio fui assediado. “Sabemos que você é de esquerda, que tem visão política e é jornalista honesto, vai ver que vai apreciar a obra do nosso General.” Eu sabia do poder da censura, que tinha como tabus a questão do regime, a política colonial e, pasme-se, o aggiornamento da Igreja Católica. Eu é que não podia recusar o repto — enfim, o meu ego também contava. Levava comigo uma lista dos lugares críticos com mais interesse jornalístico. Logo no primeiro dia, o oficial de ligação, major Otelo, o próprio, veio buscar-me ao hotel para jantar com Spínola no Palácio do Governo. “Pode ver tudo o que quiser, dou-lhe a minha palavra de honra, é só dizer!” Mostrei--lhe a lista e ele ficou espantado: “Tá dito, o que lhe disse tá dito, pode ver tudo; vejo que fez o seu trabalho de casa.” O que ele não sabia era que a lista me tinha sido sugerida por Vasco Lourenço, regressado da guerra pouco antes.

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Principais tabus da censura: a questão do regime, a Guerra Colonial e o aggiornamento da Igreja

O meu trabalho de repórter correu surpreendentemente bem, eu próprio tive de reduzir a minha lista ambiciosa, vi e ouvi mais do que esperava e consegui publicar no DL, a partir de 28 de Agosto desse ano de 1972, seis extensas crónicas que foram poupadas ao lápis azul dos coronéis.

Descobri então que Spínola havia infiltrado a máquina da censura, onde contava com a conivência de dois coronéis. Quem os controlava era o capitão Fernando Barbeitos, um ex-miliciano medalhado que venerava o chefe, e este pusera-o a meu lado, não direi como oficial de ligação, mas era isso que ele fazia.

Mais interessante foi a história da entrevista que o general me deu. O título só por si era uma pedrada no charco. Só que a entrevista não passou pela censura dos coronéis — foi censurada pelo próprio Marcelo Caetano, em negociação com o meu entrevistado. Spínola explicou-me que o chefe do governo se tinha afastado da linha estratégica que ambos tinham acordado após a morte de Salazar, “eu continuo igual a mim mesmo, Marcelo é que já não é marcelista”.

O primeiro-ministro terá exigido algumas alterações (a que mais tarde havia de aludir num livro do exílio), mas nada que não fosse negociável. O pior foi que Marcelo embicou com a frase mais importante da entrevista, “não há que temer a independência”, que exigiu mudar para “não há que temer a autodeterminação”. Foi este o título bombástico da entrevista no DL de 9 de Setembro de 1972 para espanto do público atento, que bem sabia o que era a censura. Achei mais tarde que a entrevista era uma espécie de embrião do futuro livro Portugal e o Futuro, cuja versão original já estava pronta no final do ano, vindo a ser editado em 22 de Fevereiro de 1974. Eu próprio pude ler por antecipação alguns capítulos do original que o surpreendente Spínola me ia apresentando no restaurante do Hotel Embaixador da avenida Duque de Loulé, para onde ele convidava um ou outro amigo de confiança.

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António de Spínola em Abril de 1994 com o seu livro Portugal e o Futuro, que foi lançado em Fevereiro de 1974, já com o Movimento das Forças Armadas pronto para derrubar o regime Lusa

Do que António de Spínola não gostou mesmo nada foi do antetítulo geral das seis crónicas: Guiné, crónica imperfeita. Descobri a palavra exacta ainda em Bissau. Ele tinha-me perguntado o que é que eu pensava fazer e eu expliquei-lhe que só tinha visto a guerra do ponto vista português, até tinha entrevistado o comandante-chefe, mas não pudera contactar a guerrilha nem ouvir o líder do PAIGC. Deu-me uma palmada no ombro, que quase me desossava. Ele sabia que eu sabia da sua obstinação de aliciar Amílcar Cabral para o seu processo de desenvolvimento da Guiné e que nesse sentido iniciara contactos com Leopoldo Senghor (ter-se-iam encontrado a 18 de Maio de 1972 em Cap Shiring, estância turística da costa senegalesa, a norte da “nossa” guerra).

Ora, como não tinha gostado daquele antetítulo, foi então que Spínola se vingou, fazendo-me um desafio impossível mas apaixonante: ele mesmo podia levar-me no seu helicóptero e deixar-me na mata num trilho do PAIGC, levando uma carta dele para Senghor e outra para Amílcar Cabral. Achava que os guerrilheiros iriam respeitar as cartas como salvo-conduto para me conduzirem a Dakar, tanto mais que o pessoal do PAIGC, asseverava, era gente politizada com capacidade para entender a situação. O risco, prevenia, era que eu fosse apanhado pelos agentes de Sekou Touré, odioso presidente da Guiné-Conacri, que “esses são uns broncos e podem prendê-lo como espião”. Adiou-se a aventura para mais tarde, mas entretanto Amílcar foi assassinado em 20 de Janeiro de 1973. Quando a notícia caiu no nosso telex, liguei-lhe para Bissau para o seu telefone pessoal, estava desolado, que a Guiné perdia um líder insubstituível e que Portugal perdia o possível interlocutor. Não duvidei da sua sinceridade.

A minha reportagem no DL teve impacto nos meios políticos e diplomáticos de Lisboa, alguns embaixadores procuraram-me para “ler nas entrelinhas”, como diziam, mas foi ignorada pela imprensa portuguesa — talvez ciúmes dos meus camaradas de profissão, preconceitos apressados, falta de liberdade. Vejo agora que a minha “crónica imperfeita” que, confesso, julgo ser a melhor reportagem escrita de toda a minha carreira jornalística, passou praticamente ao lado da imprensa amordaçada. Quanto a Vasco Lourenço, achou que eu ficara fascinado pela figura de Spínola.

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O Diário de Lisboa anuncia em 28 de Agosto de 1972 a primeira de uma série de seis reportagens de Avelino Rodrigues sobre a guerra na Guiné-Bissau

É certo que me surpreendeu a personalidade do general e a sua evolução política, com destaque para o desprezo que alardeava pela política do regime, num atrevimento arrasador e contagiante. Também toda a gente me falou da “Força Africana”, especialmente do Regimento de Comandos Africanos (de Almeida Bruno e Marcelino da Mata) que, com as suas três companhias de comandos e dois destacamentos de fuzileiros punham em respeito o PAIGC. Mas o que mais me interessou na Guiné foi a organização do Congresso do Povo, que Spínola considerava o embrião da futura Assembleia Popular. O segundo tema mais interessante era o empenhamento da tropa nas tarefas civis, tendo em vista o desenvolvimento económico que já se adivinhava nas cooperativas agrícolas de inspiração senegalesa e que levavam Spínola a falar-me daquele cheirinho de “socialismo africano” que lhes dera Senghor.

Um Spínola progressista, qual o quê (?) advertiam-me alguns amigos de esquerda. A todos eu respondia que o Spínola de 1972 que eu conhecera na Guiné não era o mesmo do seu passado e que antes de ser não o era. E contava-lhes histórias da sua evolução política e até da sua linguagem contraditoriamente antimilitarista, como essa de defender que num conflito entre soldados e oficiais “é o soldado que tem razão até que se prove o contrário”. Divertia-me este preconceito classista invertido, o que não podia era adivinhar que sete anos mais tarde um seu admirador chamado Otelo haveria de traduzir aquela consigna em slogan revolucionário do Copcon: “Os trabalhadores têm sempre razão até que se prove o contrário.”

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Daniel Rocha

Felizmente, outros amigos mais avançados nas lides políticas, como Manuel Tengarrinha, Magalhães Mota, Castrim e Amadeu, opinavam como eu que Spínola era um pauzinho na engrenagem do regime e que a Oposição Democrática só devia aproveitar a boleia. Quem lesse os seus livros não poderia ver além do discurso oficial, mas mesmo aí havia algumas surpresas. Era em contactos pessoais que mais se revelava, numa boa encenação mediática. Dizia-me: “O Marcelo não quer que eu fale de política; tente você dar-lhe a volta e escreva de maneira a que, quando eu digo Bissau, os seus leitores traduzam para Lisboa.” Foi o que tentei, e tive alguma sorte.

O afluente da Guiné

Ao longo do ano de 1973, a luta colectiva dos capitães evoluíra da simples reivindicação ético-profissional para um patamar de conscientização cívica contra o Governo e a política colonial, a ponto de alguns impacientes advogarem uma actuação mais determinada. De política a maioria nem queria ouvir falar.

Nos primeiros meses de 1974, entre os mais impacientes destacavam-se os spinolistas, em especial os que recentemente tinham chegado da Guiné, em companhia de Spínola, que desistira duma guerra sem saída, recusando prolongar o mandato na Guiné.

No seu conjunto, os spinolistas eram um grupo de respeito: Casanova Ferreira, Manuel Monge, Almeida Bruno, Rafael Durão, Ramalho Eanes, Correia de Campos, Dias de Lima, Alpoim Calvão, Avelar de Sousa, Mensurado, Mariz Fernandes, Carlos Azeredo, Pedro Cardoso, Firmino Miguel, Sanches Osório e outros, entre os quais alguns que se foram emancipando da tutela do chefe e vieram a ser elementos destacados do Movimento dos Capitães, como Salgueiro Maia, Otelo Saraiva de Carvalho e Carlos Fabião. Sejam também referidos muitos operacionais de Bissau menos afectos ao general, como Golias, Banazol, Pezarat Correia e Carlos Matos Gomes. E pouco se fala do staff civil de Spínola, apenas são nomeados alguns intelectuais discretos, como José Blanco, distinto responsável da Fundação Gulbenkian (que o comandante-chefe chamara para seu chefe de gabinete), e o jornalista José Manuel Barroso (que dirigia a estratégia de comunicação e assegurava a ligação com seu tio Mário Soares, exilado em Paris). Finalmente, seria imperdoável ignorar que, à margem do spinolismo propriamente dito, chegou da Metrópole em 1972/73 um pequeno grupo de oficiais de esquerda mais politizados que foi ganhando raízes em Bissau.

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General Spínola (à esquerda) na Guiné-Bissau com o engenheiro aeronáutico e major-general José Manuel Costa Neves Lusa (arquivo)

Além dos homens da Guiné afectos ao general ou seus simpatizantes, assinale-se a importância de muitas centenas de oficiais milicianos e ex-milicianos. É quase injusto apontar nomes, porque eles eram às centenas em comando de tropas, para além do teatro de operações da Guiné. O seu número era ainda maior em Angola e Moçambique, onde obviamente não eram spinolistas, só que viviam os mesmos problemas da guerra. Em contraponto, baixava a produtividade da Academia Militar (AM) e o número de capitães do Quadro Permanente. Os novos tempos aconselhavam as classes altas e aburguesadas a orientarem os seus filhos para a gestão de empresas. Perdido o prestígio classista da Academia, o número de finalistas/cadetes baixara de 146 em 1966/67 para apenas 40 em 1973. A poucos meses do 25 de Abril, a AM tinha apenas 72 alunos e apresentava 423 vagas!

O começo da guerra e a repulsa dela tinham feito explodir o Movimento Estudantil, surgido da crise académica de 1961/62, a que o regime responde da maneira mais desastrada, condenando os mais implicados à mobilização compulsiva para a guerra do Ultramar, onde muitos deles foram instigar a contestação política nas fileiras militares. Na crise académica de 1969, o regime recaiu no mesmo disparate e expulsou da universidade numerosos contestatários, que mandou para os matos africanos.

A contaminação das fileiras militares pelos contestatários estudantis alarga-se anualmente com a vasta leva de universitários mobilizados normalmente para o serviço militar obrigatório, principalmente médicos, engenheiros, professores do ensino médio e advogados. Empregos interrompidos, namoros frustrados, casamentos cada vez mais inadiáveis. Para inúmeros licenciados o drama repete-se de dois em dois anos, uns porque a duração da guerra lhes fechava qualquer saída senão “meter o chico”, outros porque a perversão da “arte militar” lhes fizera “ganhar o gosto ao dedo” e já não sabiam fazer mais nada. Formavam uma classe especial de oficiais feitos à pressa, o Quadro de Complemento (QC), ao lado dos profissionais oriundos da Academia Militar que constituíam o Quadro Permanente (QP).

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Soldados portugueses na Guiné-Bissau, em Piche Página de Facebook GUERRA COLONIAL PORTUGUESA 1961 - 1974

No mato, uns e outros sofriam os mesmos riscos, onde se esbatiam possíveis conflitos de interesse. Acontece até que, por gosto ou por terem de mostrar serviço, muitos destes milicianos e ex-milicianos se distinguiram em combate, sabe-se lá como, enchendo o peito de medalhas e cruzes de guerra. Mas os melindres corporativos (ou “corporatistas”, como eu prefiro dizer com licença de Eduardo Lourenço) surgiriam necessariamente mais tarde.

Um pequeno país com dez milhões de habitantes era chamado a aguentar três frentes de guerra em Angola, Moçambique e Guiné. De 1961 a 1974 partiram de Lisboa mais de duas mil companhias de combate, comandadas por 2370 capitães, sendo 1370 do QP (acrescidos de 13 subalternos) e mais de 1000 do QC (com 119 subalternos). Note-se que cerca de 25% dos oficiais mobilizados suportaram duas comissões ou mais, embora poucos tenham chegado aos calcanhares de Carlos Fabião, Ramalho Eanes e Pezarat Correia, estes das fileiras da Academia, com seis comissões às costas.

Para a continuação da guerra o Governo era forçado a recorrer à população universitária, porque a Academia Militar deixara de ser a fábrica de quadros das Forças Armadas. O QP já não aguentava mais. Comissões repetidas significam cansaço acumulado — impunha-se aliciar milicianos para o QC, mas estes não estavam dispostos a marcar passo até morrer no posto de capitão e ambicionavam equiparar o seu estatuto ao dos oriundos da Academia. Aí Spínola, que se arvorava em chefe dos descontentes dos dois lados, deu aos ex-milicianos a sua bênção e acolheu-os sob o seu chapéu protector. Por acasos e caminhos ínvios, a maioria destes milicianos tornou-se spinolista, engrossando a corrente que alguns baptizaram de “espírito de Bissau” e a que eu prefiro chamar “o afluente da Guiné”.

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Spínola, ao centro, com outros militares na Guiné-Bissau, em 1969 GENEVIEVE CHAUVEL/SYGMA/SYGMA VIA GETTY IMAGES

Quando ocorreu a convergência de afluentes entre a corrente spinolista e o Movimento dos Capitães, a conspiração era imparável. Nesta convergência de projectos havia diferenças e desconfianças, isso via-se desde o princípio, mas estavam unidos pelo mesmo objectivo imediato, e o melhor era não ver quem instrumentalizava quem.

Falta falar de outro afluente que pouca gente via, mais enraizado na sociedade portuguesa, à semelhança dos rios do deserto correndo nas entranhas da terra. Era a geração da revista Seara Nova, nascida em 1921, a que veio juntar-se em 1963 o Tempo e o Modo, verdadeiro rebento da cultura seareira, mais moderno e mais pluralista.

Em 1974 os três afluentes confluíram num grande Delta, triangular como todos os deltas (assim ) e nos ângulos tinha três DDD, que a gente lia “Descolonizar-Democratizar-Desenvolver”. Mas isso só se viu depois.

Caldas da Rainha, porrada já!

O afluente africano foi um “ronco”, lá isso foi, como se diz na Guiné crioula. Mas era preciso conter a força spinolista, pouco politizada, militarista, voluntarista e até arrogante — tarefa assumida pela Comissão Coordenadora e Executiva (CCE) do Movimento, onde sobressaíam Vítor Alves, Otelo e, mais uma vez, Vasco Lourenço, que em 15 de Dezembro de 1973 havia sido escolhido para coordenador operacional, isto é, comandante virtual das forças quando se decidisse sair para a rua.

Se é verdade que os spinolistas eram mais spinolistas que Spínola, nunca isso foi tão manifesto como na crise das Caldas em 16 de Março de 1974. Na ausência de Vasco Lourenço, preso em 9 de Março e recambiado para os Açores em 15 desse mês (coincidência ou não, era a véspera da aventura das Caldas), o Movimento das Forças Armadas perdera o seu primeiro coordenador de operações, que só mais tarde, em 24 de Março, seria formalmente substituído por Otelo. Mesmo que Otelo tivesse legitimidade para ocupar o posto (era o secretário da direcção operacional e braço direito do coordenador), certo é que ainda não tinha aquecido o lugar nem sequer dominava a rede de contactos montada por Vasco Lourenço.

Este ocasional vazio de poder foi preenchido por um pequeno grupo de impacientes spinolistas, acabados de chegar da Guiné. Sob a pressão do major Casanova Ferreira, rabiscou-se à pressa um “plano de operações”, menos que elementar. Voluntarismo e impaciência. Traído pela sua proverbial generosidade e pelo fascínio de Casanova, acontece que Otelo Saraiva de Carvalho se deixou arrastar para o golpe, na esperança de agarrar as pontas desgarradas da conspiração. Só a falta de comunicações pode explicar que Otelo tivesse perdido toda a noite de 15 de Março a correr de um lado para outro e de quartel para quartel, sem mobilizar ninguém. Em Lisboa, Manuel Monge, Casanova e Almeida Bruno procuram convencer o “Velho” (que era matreiro e havia de ficar-se em copas) e afadigam-se com Otelo na tentativa de última hora de mobilizar unidades afectas (mas de facto indisponíveis, porque quase todo o pessoal tinha saído de fim-de-semana).

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Otelo Saraiva de Carvalho no 1.º de Maio de 1975 Giorgio Piredda/Sygma via Getty Images

O RI5 estava “sobre rodas” desde o dia 13 de Março, quando esteve iminente uma tentativa de golpe (entretanto adiada) para impedir que Costa Gomes e Spínola fossem afastados por causa do livro Portugal e o Futuro. Era certo e sabido que os dois generais não iriam comparecer na cerimónia do beija-mão que Marcelo Caetano havia ensaiado no Palácio de São Bento, para a qual convocara os generais do regime em 14 de Março. A cerimónia era um manifesto acto de vassalagem a Marcelo e à sua política de guerra, por parte daquela “brigada do reumático”, epíteto que os jovens capitães lançaram sobre os decrépitos generais. Perante a exoneração confirmada de Spínola e Costa Gomes, que o Movimento havia escolhido para líderes formais do seu projecto, era enorme a indignação nos núcleos de conspiradores espalhados pela maior parte das “unidades de força”. Os spinolistas estavam convencidos de que seria fácil cavalgar esta força do Movimento para iniciar o golpe, especialmente o RI5 das Caldas da Rainha, no pressuposto de que as tais Unidades se lhe juntassem, Santarém, Lamego, Viseu, Mafra e Academia Militar. É então que os quatro conspiradores impacientes que em Lisboa julgavam interpretar a vontade da Comissão Coordenadora (de facto paralisada) enviam para Caldas o capitão miliciano Armando Ramos, como estafeta, com ordem para arrancar.

O RI5 era a única Unidade realmente preparada e municiada, só precisava que a Comissão Coordenadora desse ordem para arrancar. Para onde, logo se veria. Quando o capitão Ramos chegou às Caldas pelas 23 horas da noite de 15 de Março, tanto os oficias do Movimento como os poucos spinolistas do quartel aceitaram a voz do “estafeta” como ordem de marcha da Comissão Coordenadora, no pressuposto de que Otelo já estaria no comando de operações em Lisboa. Embora minoritários, os milicianos spinolistas do quartel evidenciaram-se na tomada da iniciativa, com destaque para o capitão miliciano Virgílio Varela, que se distinguira na prisão do comandante. Foi total a adesão dos oficiais do Movimento, se bem que o mais antigo deles, o capitão Gonçalves Novo, elemento preponderante do Movimento no RI5, se revelasse menos sintonizado com a jactância do “estafeta”, não tendo participado na marcha sobre Lisboa. Preferiu assumir o posto de oficial de dia e organizar a defesa da Unidade. Também o capitão Piedade Faria, comandante efectivo da Companhia de Caçadores, a única força de combate, declarava que não cedia o comando dos seus homens. De resto todo o pessoal comungava do objectivo comum, o derrube do regime.

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Virgílio Varela, à esquerda, a discursar durante uma visita do general Spínola ao RI5 nas Caldas da Rainha, poucos meses depois do 25 de Abril DR

E chefes? Quando o golpe estalou no RI5 os revoltosos não tinham chefe nem voz de comando. “Até parecia que ninguém queria chegar-se à frente”, como Artur Ramos escreveria mais tarde. Tudo era “interpares numa sã camaradagem” e sem ambições pessoais. Além do mais, não se conhecia um plano efectivo de operações, apenas estavam convencidos de que iam ao encontro das tropas de Lamego e doutras unidades, que era suposto estarem em marcha sobre Lisboa. Era rebate falso. Lá saiu a coluna-fantasma, que só parou à porta da capital, onde foi sustida por Monge e Casanova, os quais assumiram a responsabilidade do fracasso e acompanharam a coluna no retrocesso às Caldas.

Entretanto, o quartel era cercado por tropas da Região Militar de Tomar sob o comando do brigadeiro Serrano, que anos antes tinha sido comandante da unidade. Apesar da sua defesa organizada a tempo os revoltosos só procuravam adiar a rendição, até confirmarem que estavam isolados e que mais ninguém saíra da toca.

E afinal quem comandou a coluna para Lisboa? A questão só vale a pena, porque tem sido um cavalo de batalha dos centuriões spinolistas, que sempre se revelaram resolutos, mas vazios das ideias do Programa do Movimento, para além de se declararem vigorosamente anticomunistas.

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Guarita de defesa da porta de armas do RI5, em 16 de Março de 1974 DR

De facto, quase todos eram “anticomunistas primários”, nome que ao tempo desclassificava qualquer um. Mas nada anula o facto de o essencial da força ser a Companhia de Caçadores, sob comando do capitão Piedade Faria, que não abdicava do comando dos seus homens. Foi ele que deu ordem de saída à coluna pelas 4 horas da manhã do dia 16 de Março e, mais tarde, consumado o fracasso, foi ele quem foi chamado à porta de armas pelo comandante das forças sitiantes, brigadeiro Serrano, para negociar a rendição, que Monge e Casanova tentavam protelar, em nome de Spínola.

Consumada a rendição, todos os oficiais implicados, cerca de 30, foram presos e o estado-maior spinolista ficou decapitado, incluindo Almeida Bruno, que a PIDE surpreendera perto da casa de Spínola em Lisboa. O general ficava sem estado-maior. E o governo, esse inocentemente declarava uma vitória (de facto, uma vitória pífia), não se dando conta de que a sonolência do Regime duraria umas poucas semanas até ao 25 de Abril.

Entretanto a conspiração esmoreceu e praticamente passou à clandestinidade. Mesmo assim, um destacado spinolista confidenciava-me que dentro de dois meses iriam organizar outro golpe, desta vez é que era infalível, quer vencessem quer não. “Nas Caldas prenderam-nos trinta camaradas, e o Governo tremeu, mas da próxima ou vencemos ou terão de prender duzentos, talvez mais. E com tantos oficiais presos, como é que o Governo se aguenta nas canetas e consegue continuar a guerra?”

Não é possível saber se era uma “boca” ou se os spinolistas tinham um plano B; talvez não passe de uma coincidência, mas eu passei a contar os dias pelos dedos da mão.

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Momentos em que o brigadeiro Serrano negoceia a rendição com os revoltosos
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Consumada a rendição, todos os oficiais implicados, cerca de 30, foram presos e o estado-maior spinolista ficou decapitado

Nota final (mas não conclusiva)

Da aventura spinolista das Caldas pouco mais restou que uma polémica serôdia, alimentada pelo sector spinolista. De tudo o que pude ver, não direi que a polémica das Caldas esteja arrumada, mas aqui me atrevo a propor uma breve análise, que tenho por segura.

1) A coluna das Caldas avançou sem comando porque tinha dois comandos: um era formal (Piedade Faria), outro era “subversivo” (Armando Ramos). Ainda bem que não tiveram de actuar. Manifestamente os conjurados não tiveram tempo para chegar a acordo, pressionados pela convicção de que estavam atrasados para o presumível encontro com as Unidades do Norte. Tal como Armando Ramos, também Piedade Faria contava entregar a coluna ao comandante operacional, supostamente Otelo, que estaria em Lisboa à espera das colunas que deveriam estar em marcha, como de Lamego se anunciara em vão.

2) O 16 de Março é uma iniciativa spinolista sem Spínola, provocada por devotados cortesãos, mais papistas que o Papa. Desejosos de mostrar serviço ao chefe, disputam os seus favores, menos benesses que poder. Não constituem um corpo orgânico com responsabilidades hierarquizadas, são peões individualistas ao dispor de sua senhoria, que de facto teme partilhar responsabilidades porque não arrisca partilhar poder. O 16 de Março revela-se como uma tentativa de antecipação spinolista ao Movimento dos Capitães. Mas o caudilhismo bonapartista de Spínola era uma doutrina redutora na política interna (enquanto projecto de “democracia musculada”) e uma estratégia neocolonialista utópica na questão africana (enquanto projecto federalista desfasado no tempo). “Não estará doze anos atrasado, meu general?”, tinha-lhe eu perguntado em 1972, e ele só me respondeu que não havia alternativa, mas que “em Cavalaria não conhecemos becos sem saída, vamos em frente e rebentamos o muro”.

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Militares revoltosos no interior do quartel das Caldas da Rainha durante o cerco das tropas da Região Militar de Tomar DR

3) O 16 de Março não foi pensado como ensaio geral do 25 de Abril, mas acabou por ser um exercício muito útil para corrigir falhas técnicas e afinar a base política do Movimento dos Capitães. Daí que ainda agora os spinolistas tentem apropriar-se da intentona das Caldas, considerando-se pioneiros do 25 de Abril. O que não confessam é que o “seu” 25 de Abril seria um golpe para colocar Spínola no poder com a sua política autocrática, onde temporariamente cabia a PIDE e a continuação da guerra, além do projecto federalista utópico que almejava aglutinar as ex-colónias numa “commonwealth da portugalidade”.

Epílogo

Gostaria de fazer justiça, se assim posso falar, à pessoa do general Spínola, no propósito de afastar interpretações erróneas do retrato que nestas páginas deixei. No meio das suas contradições, Spínola ficou-me na lembrança, já o confessei várias vezes, com a grandeza de uma figura de tragédia na derrocada do império. Quando colapsou no 28 de Setembro de 1974, fui visitá-lo a Massamá. Disse-me que Álvaro Cunhal o tinha enganado e que estava a ler os clássicos da revolução russa para não cair noutra. Mas caiu desesperadamente.

António de Spínola não foi um homem do futuro, foi um homem lúcido num momento louco do destino português. Era um patriota puro-sangue, dos que sentem a voz dos seus “egrégios avós”. Mas não foi Spínola quem inventou o Quinto Império — foi Luiz de Camões, João de Barros, António Vieira, Fernando Pessoa. E também o cardeal-patriarca Gonçalves Cerejeira, que visionava “novos brasis” em Angola e Moçambique, e sem esquecer Adriano Moreira, que ainda em 1973 sonhava com o seu “Oceano Moreno” amarrado no triângulo Lisboa-Luanda-Rio.

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O general António de Spínola no Palácio de Queluz, depois de tomar posse como Presidente da República, no dia 15 de Maio de 1974 ALAIN DEJEAN/SYGMA VIA GETTY IMAGES

Como sofrer o fim do mito? Será que confundimos o poema com a realidade bruta e crua? Ou não soubemos ler os nossos poetas? “Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal / ainda vai tornar-se um imenso Portugal… ainda vai tornar-se um império colonial.” Mas o que é isto, Chico Buarque, então o rio Amazonas desagua no Tejo? A pátria, o que é a pátria? O que são os heróis que não entendo ou morreram por quimeras que animaram o mito? Por mim, confesso que nunca esquecerei a experiência vivida de ter conhecido um deles, “o último general romântico”, que procurei revelar no tablado dos jogos de guerra, a política e a guerra-espectáculo, que ganharam forma na representação mediática dos jornalistas do meu tempo.

Por mim, limitei-me a esboçar algumas histórias da nossa conspiração, como uma dialéctica entre dois projectos emergentes, que vi polarizados em dois protagonistas, um representa um império que se fina, outro um futuro que renasce. Mas isto é apenas um jogo de sombras, corsi e ricorsi da espiral da vida, pois que o mundo eppur si muove, em evolução solidária e contradição permanente, com o peso do tempo e a mole imponderável dos povos. Por isso me refugio na ideia de que o 25 de Abril mal começou, mal se conhece e não pára de acontecer.


Lisboa, 04.03.2024

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