O genocídio de Gaza, a culpa inglesa e “banir extremistas da vida pública”
O Governo britânico prepara-se para “cancelar” os “extremistas” e vai anunciar um plano para banir da vida pública “indivíduos e grupos que minem o sistema de democracia liberal do Reino Unido”.
É preciso ir ao podcast do diário de referência israelita Haaretz para encontrar um título assim: “Netanyahu wants the world to acuse Israel of Genocide, Apartheid and Ethnic Cleansing” (Netanyahu quer o mundo a acusar Israel de genocídio, apartheid e limpeza étnica) e não ser acusado de anti-semitismo.
É um podcast feito por israelitas, num jornal que, em editorial, apela aos cidadãos para ocuparem as ruas de Telavive para ajudar a derrubar o primeiro-ministro e a sua política de extinção de Gaza – uma mensagem que os israelitas que encheram este sábado as ruas de Telavive, Haifa, Caeserea, ouviram.
A América já não apoia Israel, mas também não parece saber ao certo o que fazer. Do discurso do estado da União de Joe Biden ficou claro o distanciamento com o massacre promovido pelo governo de “Bibi”, mas também um retrato da impotência. O que promete Biden? A construção de um porto de emergência no Mediterrâneo para receber navios com alimentos para entregar à população mártir de Gaza.
Embora uma grande parte das comunidades judaicas espalhadas pelo mundo esteja em choque com o governo de Israel, muitas outras apoiam a vingança do 7 de Outubro tal como ela está a ser feita. Com eleições em Novembro, espera-se a paralisia, na prática, dos Estados Unidos, relativamente a grandes mudanças de política sobre o massacre de Israel.
Provavelmente, a tragédia de Gaza é capaz de incomodar menos pessoas em Portugal do que a destruição do quadro de Arthur Balfour, por um manifestante pró-palestiniano, esta semana em Cambridge. Balfour, quando era ministro dos Negócios Estrangeiros do Reino Unido, assinou em 1917 a primeira declaração, que ficou conhecida pelo seu nome, em que reconhecia o direito de Israel – com alguns “mas”, nomeadamente a protecção dos povos já instalados – de se estabelecer nas terras da Palestina. No centenário da declaração Balfour, o jornalista Gideon Levy escreveu no Haaretz: “Um império prometeu uma terra que não tinha conquistado a um povo que não vivia lá, sem nada perguntar aos seus habitantes.”
Se a declaração Balfour nasce de uma história de impérios, há outro factor que quem chora a destruição do quadro de Balfour não sabe: Arthur Balfour, como muitos no tempo dele e décadas mais tarde, era anti-semita e preferia ver os judeus fora de Inglaterra. É dele, quando era primeiro-ministro, em 1905, uma lei “dos Estrangeiros” destinada a travar a entrada de judeus no Reino Unido, em fuga do anti-semitismo crescente em outras zonas da Europa, nomeadamente na Rússia. O manifestante não destruiu o quadro de um sionista, mas de um anti-semita que usou os judeus para os seus interesses imperiais.
Décadas depois, nas vésperas da II Guerra, o anti-semitismo em Inglaterra era uma realidade. A desconfiança relativamente aos judeus refugiados foi enorme, e uma das nódoas do Governo Churchill foi ter decidido colocar em “campos de internamento”, lado a lado, refugiados alemães judeus e alemães nazis.
Da culpa alemã já se falou muito. A culpa dos ingleses é raramente invocada, mas continua a marcar as decisões dos governos. A abusiva confusão que Rishi Sunak agora faz entre manifestantes anti-semitas e manifestantes antipolítica de Israel (no que é apoiado pelo líder do Partido Trabalhista), afirmando existirem zonas em Londres “onde os judeus não podem entrar” – coisa negada pelas próprias organizações judaicas – pode ser, em parte, uma herança dessa culpa “histórica”. Este sábado, o Observer divulgou que o Governo britânico prepara-se para “cancelar” os “extremistas” da vida pública. Michael Gove vai anunciar um plano para banir da vida pública “indivíduos e grupos que minem o sistema de democracia liberal do Reino Unido”. Se isto não é censura, o que será a censura. Um destes dias somos mais livres a ler um jornal israelita como o Haaretz do que a confiar na velha Inglaterra outrora liberal.