Por terem paralisia cerebral, eles não votam em segredo... mas podiam
Quando um amigo quis votar sem o pai e não pôde, Rui Coimbras decidiu mudar o sistema de voto para pessoas com paralisia. Pode usar-se noutras áreas e deficiências, mas ainda não é aplicado. Porquê?
“Imagine que tem um acidente a esquiar, parte o braço e no dia a seguir se realizam eleições: como iria votar?”, pergunta Rui Coimbras, informático e presidente da Federação das Associações Portuguesas de Paralisia Cerebral (FAPPC). A resposta é só uma, sem escapatória possível: teria de se dirigir a um médico para que fosse autorizado a levar uma pessoa para realizar o “voto acompanhado”, colocando – ou não – a cruz pela sua vez. Caso não optasse por esta alternativa, não teria outro remédio que não pertencer ao grupo da abstenção.
Foi ao ver um amigo “politicamente activo” com paralisia cerebral, José Rui Marques, que não consegue mexer as mãos, a recusar-se a votar por se sentir “humilhado pelo pai” – com interesses políticos que entravam em conflito com os seus –, que Rui Coimbras decidiu agir.
Com a Softinsa – subsidiária da IBM –, onde trabalha como arquitecto de soluções IT, criou um sistema digital de voto que tem por base um simples botão. Com esse sistema, o eleitor, ainda que não consiga mexer os membros, pode seleccionar, através de um ecrã que alterna entre as opções dos partidos, aquele em que quer depositar o seu voto. De acordo com Rui Coimbras, o sistema também se aplica, por exemplo, a invisuais (cegos) ou mesmo idosos com condicionamentos físicos, já que há também uma voz nesta tecnologia e vai lendo as opções: quando é dito o nome do partido que se quer seleccionar, basta clicar num botão, que pode estar junto ao rosto da pessoa ou num manípulo. De seguida, a máquina imprime um “recibo” com um código QR encriptado, que só pode ser lido pelos responsáveis que estão nas mesas de voto. Para o informático, esta é a única forma de “tornar o voto completamente secreto”.
Ainda que tenha sido elaborado a pensar em José Rui Marques, o amigo que era criticado pelo pai pela sua filiação política – integrou as listas do PSD no Porto em 2021 –, a abrangência da fórmula é grande e vem resolver o problema de uma outra deficiência: “75% dos cegos não sabem ler braille”, por isso, o sistema de escrita em código com relevos utilizada pelos invisuais “é muito reduzida, teve cerca de 80 votos nas últimas eleições”, acarreta “altos custos e complica-se devido à diferença das listas em diferentes distritos”, explica Rui Coimbras.
É, por isso, um sistema “transversal”, conta o presidente da FAPPC, porque pode ser usado por qualquer pessoa e em vários contextos, como por exemplo, na escola. “Queremos exames nacionais em que possamos ser avaliados de igual maneira”, explica, e por isso mostra como o sistema de botão pode ser aplicado, designadamente, em respostas a perguntas de escolha múltipla. Destaca também que o método já foi usado anteriormente, no Orçamento Participativo da Câmara Municipal de Viseu em 2019 e 2021, no qual existia uma descrição áudio de cada uma das propostas, e com auxílio de imagens ou ilustrações. Também na própria associação já utilizou o “voto acessível”, como é chamado, em eleições internas no núcleo do Porto.
Ainda que não tenha sido, por agora, aplicado em nenhum país em contexto de eleições políticas, e apesar dos esforços do informático na sua reivindicação “sem sucesso” desde 2019, o sistema recebeu em Fevereiro de 2023 um prémio da ONU pela “inovação e abrangência”. O The Zero Project premeia soluções inclusivas e inovadoras, dirigidas, em particular, a grupos desfavorecidos. Em Maio de 2023 também o município de Vouzela, onde nasceu Rui Coimbras, homenageou a iniciativa, durante as comemorações do feriado municipal.
O método não resolve tudo: o próprio sistema de voto, por freguesia, pode “denunciar” as pessoas com paralisia cerebral, explica o autor da tecnologia, já que se torna fácil, caso existam poucas ou mesmo uma só pessoa em cada local de voto que façam uso do “voto acessível”, perceber em quem a pessoa votou, visto ser detentora do único voto encriptado em código QR. É por isso que a FAPPC defende “o voto por concelho” e não por freguesia, para poder abranger mais pessoas com deficiência sem revelar a sua escolha política.
Mas não são só os impedimentos no acto de desenhar a cruz que impedem as pessoas com paralisia cerebral – ou qualquer outra deficiência física – de se dirigirem às urnas: depois da pandemia de covid-19, em 2020, o número de secções de voto em Portugal subiu de cerca de 10 mil para 13 mil, o que trouxe complicações. “Na freguesia onde moro, o lugar onde se vota não tem condições de acessibilidade”, conta o presidente da FAPPC.
O PÚBLICO contactou a Comissão Nacional de Eleições (CNE), que esclareceu: “A alteração destas leis é da exclusiva competência da Assembleia da República.” Ainda assim, lembra, “a CNE, no passado, já organizou uma apresentação pública da solução tecnológica da FAPPC, tendo convidado os diversos grupos parlamentares para a assistir”. A CNE refere ainda que é possível descobrir no seu website os locais de voto com verificação de acessibilidade na secção “Comunicados e deliberações”. No mesmo site, também se pode ler quais as possibilidades de voto para pessoas com condições físicas (voto em braille e acompanhado).
Segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE), há cerca de um milhão de pessoas (mais de 10% da população) com pelo menos uma incapacidade, o que, na grande parte das vezes, os impede de escrever os dois traços no papel. É por isso que considera “uma questão de direitos humanos” a possibilidade de votar sem acompanhamento, e a falta de alternativas como uma “violação ao artigo 10.º da Constituição Portuguesa”, onde se lê que “o povo exerce o poder político através do sufrágio universal, igual, directo, secreto e periódico”.
Texto editado por Pedro Esteves