Dois minutos. Apenas dois minutos: é este o tempo dado a uma equipa de quatro sommeliers para descobrir, em prova cega, o país e região de origens, castas, ano de colheita e produtor de um determinado vinho. O processo repete-se para seis brancos e seis tintos, naqueles que são considerados os Jogos Olímpicos do mundo dos vinhos. O World Wine Tasting Championship acontece anualmente em França e até 2017 nunca tinha testemunhado nada tão disruptivo como aquilo que aconteceu nessa edição: a entrada em prova de uma equipa do Zimbabwe, a primeira de sempre daquele país, a primeira de sempre composta na totalidade por participantes negros.
Os protagonistas deste feito são Joseph Dhafana, de 42 anos, Marlvin Gwese, de 38, Pardon Taguzu, de 37, e Tinashe Nyamudoka, de 43. Todos eles têm em comum o facto de terem chegado à África do Sul na condição de refugiados e de nunca terem provado uma gota de vinho antes de partirem do Zimbabwe. De uma quase total ignorância até se tornarem provadores de referência, reconhecidos e premiados pela indústria sul-africana, muita coisa aconteceu. Não fosse o documentário Blind Ambition (2021) e a presença de Joseph, Marlvin e Pardon em Portugal, a propósito da 20.ª edição da Essência do Vinho, juraríamos que tudo isto não passava de pura ficção.
“Luta sem descanso para chegarmos onde estamos”
Sentados numa sala envidraçada da Quinta Nova de Nossa Senhora do Carmo, com o sol e a chuva a digladiarem-se no excesso de natureza que é o Douro de Miguel Torga, os três sommeliers vão trocando impressões sobre os vinhos que têm à sua frente. “Apenas sabia o básico dos vinhos portugueses”, diz Marlvin, deliciado com um Grainha Branco Reserva 2022. Pardon, por sua vez, já tinha estado em Portugal, numa prova na Beira Baixa. Para ele, os vinhos portugueses “são absolutamente excepcionais”. Joseph, mais contido nos seus comentários, mostrava-se rendido aos rosés: “Toda a gente lá fora sabe que em Portugal se fazem os melhores Porto, mas quando se trata de rosés e vinhos tranquilos, não há grande conhecimento. Não estava à espera de provar algo tão fenomenal.”
Dos três, Joseph foi o que passou mais privações. “No Zimbabwe não há classe média. Só há os pobres e os ricos. Eu pertencia à classe mais pobre e foi por isso que decidi partir”, conta sobre a sua decisão de emigrar para a África do Sul em 2008, altura em que Robert Mugabe assumiu o sexto mandato como Presidente do Zimbabwe. Nesse ano, marcado por uma crise económica e uma hiperinflação sem precedentes, a repressão do regime tornou-se extremamente violenta. Pelo menos 200 pessoas foram mortas durante o processo eleitoral.
Partir pareceu a Joseph – e aos mais de três milhões de cidadãos que saíram do Zimbabwe desde 1995 – a única solução viável para garantir boas condições de vida para si e para a família. Ele e a mulher seguiram para a África do Sul, o filho, então com dois anos, ficou para trás. A travessia era demasiado perigosa. “Quase que morremos na viagem”, ouvimo-lo dizer em Blind Ambition, lembrando os tiros na fronteira, os crocodilos, o contentor de comboio asfixiante e apinhado de gente que os levou até Joanesburgo. Uma vez lá, Joseph viu “de tudo”: “Dormi nas ruas, comi de caixotes do lixo, não foi nada fácil. Foi uma luta sem descanso para chegarmos onde estamos hoje”, diz-nos nos olhos, segurando um Vintage de 2000 nas mãos.
O primeiro vinho que provou, com 28 anos, foi um espumante Pieter Cruythoff (sul-africano). “Não gostei”, confidenciou no documentário. Apesar da estranheza, a curiosidade fê-lo querer conhecer mais. “Gosto de pensar que nascemos com talentos escondidos que, de certa forma, foram activados quando começámos a provar vinho”, partilhou com o portal wine.co.za. De jardineiro no restaurante do chef Mynhardt Joubert passou a copeiro, empregado de mesa e, finalmente, sommelier. “Quase chorei quando ele me propôs ser empregado.” Actualmente, é head sommelier no restaurante de fine dining La Colombe e gere o seu próprio projecto, o Mosi Wines and Spirits.
Já Marlvin Gwese veio de um meio ligado à Igreja Pentecostal, cujos princípios se opõem ao consumo de álcool. “Dado que Jesus transformou a água em vinho, pensei que devia ser aceitável bebê-lo”, costuma brincar este ex-estudante de informática. Numa postura mais séria, admite que o facto de ter crescido num ambiente em que o álcool era proibido foi uma das principais razões para se ter envolvido na indústria. “Quis mostrar às pessoas que era possível introduzir uma nova cultura sem desprezarmos as nossas raízes e origens.” Os espumantes Mukanya Brut Rose e Mukanya Cap Classique nasceram das suas mãos e o grupo hoteleiro Liz McGrath Collection tem a sua curadoria na área dos vinhos.
Pardon, por seu lado, chegou à África do Sul em 2009 com uma licenciatura em Economia e Psicologia do Desporto. Isso de nada lhe serviu. Depois de bater a várias portas, arranjou trabalho no Royal Hotel, para ajudar na logística de um festival de azeite, e foi aí que começou a ouvir os primeiros termos associados ao mundo dos vinhos. Porém, foi apenas quando se mudou para a Cidade do Cabo e se cruzou com Joseph que começou a provar a sério. “Ao início não foi uma experiência muito agradável”, diz, mas a seguir veio mais um copo e outro, e de repente a garrafa que o amigo lhe tinha servido desaparecera. “Fiquei dois dias enjoado”, comenta em Blind Ambition. Hoje vive nos Países Baixos e gere a Dzimbahwe Wines, empresa representante e distribuidora de vinhos africanos.
Para os três, a cultura do vinho simboliza pertença. O futuro do sector, defendem, passa por diversificar as narrativas. “Toda a gente é muito diferente e eu não posso impor a minha cultura a outra pessoa. Aceitar que alguém pode ser tão bom como eu é a chave.” Com estas palavras, Marlvin ergueu o copo no final do almoço na Quinta Nova de Nossa Senhora do Carmo, onde não faltaram os cuscos transmontanos, a vitela, a truta do Douro e o toucinho do céu: “Para nós, estar aqui significa muito.” As palavras foram celebradas com um brinde cantado em ubuntu, língua e filosofia africana que reconhece a humanidade do outro como condição da nossa própria humanidade. “Se nos vêem a rir e a fazer piadas, é porque estamos felizes onde estamos.” As gargalhadas que ecoaram na sala não deixaram dúvidas.
“Fama nem sequer existe no meu dicionário”
A história dos quatro sommeliers não passou despercebida à conceituada crítica de vinhos britânica Jancis Robinson. No mundo dos vinhos, diz, a diversidade é “péssima”: “Só se vêem caras brancas.” Jancis foi uma das grandes impulsionadoras da participação da Equipa Zimbabwe no World Wine Tasting Championship. Foi ela que dinamizou a campanha de crowdfunding para levar Joseph, Marlvin, Pardon e Tinashe a Borgonha. Eram precisas 6.500 libras (mais de sete mil euros) e, num mês e meio, a campanha conseguiu angariar praticamente 9.500 euros.
O outro mentor foi o sommelier Jean Vincent Ridon, responsável pela equipa da África do Sul, que Joseph tinha integrado em 2015. Jean treinou os quatro sommeliers até eles arranjarem o seu próprio treinador, o excêntrico sommelier francês Denis Garret. No ano de estreia na competição, ficaram em penúltimo. Apesar do amargo de boca, tinha sido feito história. Isso, salienta Marlvin, foi o mais importante: “Representar o nosso país foi muito gratificante.”
Ao longo de várias semanas, entre África do Sul e França, os quatro sommeliers foram filmados pela equipa australiana liderada por Warwick Ross e Rob Coe. “Quando estes tipos da Austrália vieram ter connosco, achámos que eram mais uns que se queriam aproveitar de nós. Não tínhamos fé nenhuma naquilo que eles estavam a fazer”, comenta Joseph, justificando o cepticismo pelos “inúmeros charlatões” com que se haviam cruzado anteriormente. “Só quando nos informámos melhor sobre quem eram mesmo estes tipos é que percebemos que podia ser sério.”
O documentário estreou-se em 2021 no Tribeca Film Festival e ganhou os prémios de Melhor Documentário no Sydney Film Festival e o Prémio do Público no San Francisco Film Festival, em 2022. “É uma conquista que nunca se apagará dos nossos corações. Não dá para esquecer.” A história da Equipa Zimbabwe tornou-se viral, mas nem por isso Joseph, Marlvin, Pardon e Tinashe se consideram superestrelas: “Para ser honesto, esse conceito de fama nem sequer existe no meu dicionário. A pessoa mais famosa é aquela que ajuda mais pessoas.” É nisso que eles acreditam. Brindemos, novamente, em ubuntu.