Afinal, quanto custa formar um médico?

A tentativa de obrigar os médicos a retribuir a sua formação com trabalho forçado ou com dinheiro, num regime quase militar que não escolhemos, não representa a solução para fixar profissionais.

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A discussão sobre o custo da formação médica tem vindo a motivar trocas de argumentos apaixonadas, na maioria das vezes pouco sustentada em dados objetivos. Este tema foi recentemente ressuscitado pelo programa eleitoral do Partido Socialista, que sugere a criação de um tempo mínimo de dedicação ao Serviço Nacional de Saúde. Mas afinal, quanto custa formar um médico? A resposta não é simples.

Comecemos por procurar no Google o “custo de um médico”. Seremos encaminhados para um artigo de opinião de 2015 da autoria de José Ponte, publicado no PÚBLICO, que refere um custo de 100.000 euros só para a formação pré-graduada e um custo total entre 300 a 500.000 euros se considerada também a especialização. Mas como é se chegou a esses valores? São reais? Tentarei então ser mais factual e menos parcial.

Os relatórios de atividades e contas das diferentes universidades não são de análise fácil. Os dados financeiros por aluno e por curso raramente são disponibilizados de forma direta, sendo necessário dissecá-los para obter conclusões. Mas vamos a exemplos concretos.

A Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa apresenta no seu plano de atividades para 2023 um total de 2880 alunos inscritos (2175 no Mestrado Integrado em Medicina (MIM), 233 em doutoramento, 369 em mestrado e 103 na licenciatura em Ciências da Nutrição) e um orçamento total de 19.289.830 euros. Dividindo este valor pelo total de alunos, chegamos ao custo de 6.697,90 euros por aluno, correspondente a 40.187,20 euros em seis anos. É uma análise imperfeita porque inclui alunos de outros ciclos de estudos, mas é a análise possível.

A Faculdade de Medicina da Universidade do Porto indica no seu relatório de contas de 2022 um total de 2765 alunos inscritos (1661 no MIM, 643 em doutoramento, 461 em mestrado) e um orçamento de 17.168.960 euros (12.355.960 euros do orçamento de estado, 4.813.000 euros de propinas). Isto representa, portanto, um valor de 6.209,40 euros por aluno a cada ano (sendo apenas 4.468,70 euros comparticipados pelo OE) e um total de 37.256,3 euros em seis anos.

A Universidade do Minho é mais simples na apresentação dos dados: menciona no seu relatório de contas de 2022 um gasto médio por aluno e por ano na sua Escola de Medicina de 7.454,20 euros, equivalente a 44.725,20 euros em seis anos.

Mas, pela sua importância e facilidade de apreciação, vamos a dados mais antigos: a Universidade da Beira Interior apresentava até ao seu relatório de contas de 2011 uma interessante análise do custo por aluno para todos os cursos da instituição. E a surpresa é que o MIM era o que menor custo representava, com 4.471,30 euros por aluno/ano, o que equivale a 26.827,90 euros em seis anos. Mas a verdade é que já se passaram 12 anos. Vamos então ajustar o valor dos seis anos de MIM à inflação, uma vez que não é previsível que os custos reais tenham, entretanto, aumentado: são aproximadamente 33.000 euros.

Resumindo: em quatro universidades públicas capacitadas para lecionar o mestrado em Medicina, o custo de seis anos de formação varia entre 33.000 euros e 45.000 euros. Valores que representam menos de metade dos 100.000 euros preconizados em vários fóruns e publicações pouco objetivas. E como é possível que seja tão barato formar um médico?

Para quem conhece a realidade, estes dados não causam surpresa. São poucos os professores nas faculdades de Medicina a lecionar em full time. A isto adicionam-se os tutores nos hospitais e centros de saúde, que, na sua maioria, ensinam a custo zero. Os consumíveis são poucos. E as instalações são as mesmas que para qualquer outro curso. Muita da preparação do material de ensino e da correção de trabalhos e histórias clínicas é feito em casa, já depois do horário laboral e sem remuneração extra. Como muitos gostam de lembrar, fizemos um juramento e gostamos de o cumprir.

Nem entro no suposto custo do internato, porque se trata de uma falácia. O SNS depende em grande parte dos seus internos, que cumprem inúmeras horas extras sem direito a remuneração. Fazem trabalhos e cursos nos tempos livres, tantas vezes pagos do seu próprio bolso. E recebem um salário pouco condizente com o seu esforço.

A tentativa de obrigar os médicos a retribuir a sua formação com trabalho forçado ou com dinheiro, num regime quase militar que não escolhemos, não representa a solução para fixar profissionais no Serviço Nacional de Saúde. Isso faz-se sim com condições remuneratórias adequadas, com projetos diferenciadores e com a adequada valorização da profissão.

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