A voz ao fundo
Não dava para ouvir bem. Uma voz sumida ao fundo que parecia a da minha mãe. “Estás a ouvir?” Não era possível.
Como um narrador de Jon Fosse, entrei no carro com a sensação agradável de não ter um destino marcado. Gosto de embalar as ideias ao volante. Na cabeça, levava pensamentos a caminho de lugar nenhum.
Deixei que a viatura nos guiasse. Chuva miudinha na marginal salpicando o vidro, o som das escovas limpa pára-brisas a chiar baixinho como um fungar entupido. À direita, o Mónaco devoluto. Onde antes houve luxo, é agora assumido lixo que entristece a paisagem.
Eu vivo sozinha. Pego no carro quando quero, abandono a casa quando me apetece, embora tenha atenção ao gasto de gasolina. Não sou rica. Hoje é Domingo, faço a extravagância de conduzir pela urbe, para fora da cidade. Do lado esquerdo, o mar. É de noite e não se vê bem, mas sei que vive daquele lado. Baixo um pouco o vidro e oiço-o. Está irascível, asseguraram tempestade para esta noite.
Vento e frio irrompem pelo carro. Torno a subir o vidro e a isolar-me do mundo. Conduzir em silêncio à noite pela marginal; isto sim, é um luxo. O piso está escorregadio, é preciso avançar com cautela. Uma mota passa a grande velocidade pelo meu lado esquerdo, assustei-me um pouco, não previ o estrondo desorientador. Um pensamento que não controlo — e se fosse até à praia, agora à noite? A tempestade ainda não começou, apenas uma chuva miúda que não mete medo.
Fiz inversão na rotunda e acostei-me uns metros mais adiante. Vesti o casaco e levei o guarda-chuva. Sem saber bem o que me movia, desci as escadas até ao areal molhado. O vento forte dobrou-me em segundos a sombrinha, partiram-se duas varetas. Deixei de me proteger; de qualquer forma, o objecto deixou de ter utilidade. A chuva fria no rosto fez-me lembrar qualquer coisa que não sabia dizer. O som do mar bravo a uma distância razoável pareceu-me atraente.
Avancei pela areia, empurrada pelo vento que vinha em direcções várias, ora da esquerda, ora da direita, de frente ou de trás, era imprevisível. Pisei sem querer uma garrafa de cerveja semienterrada, ouvi o vidro estilhaçar-se debaixo do meu pé. Não me magoei. Talvez fosse melhor voltar para trás, para o carro. Que raio estaria eu ali a fazer numa noite de Domingo? Continuei a caminho do mar, talvez movida por uma atracção antiga pelo perigo.
Liguei a lanterna do telemóvel, queria vê-lo de perto, pelo menos a ínfima parte que a lanterna conseguisse iluminar. Uma onda gigante quebra alguns metros à minha frente. Que assombro. O telefone começou a vibrar na minha mão. Uma chamada onde se lia "Mãe". Estremeci. Como assim? A minha mãe morreu há dez meses. Quem teria o seu telemóvel? Com o ruído feroz do vento e do mar, com as mãos encharcadas da chuva atendi a chamada. Não dava para ouvir bem. Uma voz sumida ao fundo que parecia a da minha mãe. "Estás a ouvir?" Não era possível. Muito ao longe, parecia a voz da minha mãe ao telefone, quase podia jurar que sim. "Estás a ouvir? Sai daí."