Marta tem hoje 17 anos e é uma das vozes que dão visibilidade a uma doença, que, 20 anos após o seu reconhecimento, continua a ser das poucas em que se coloca sobre o seu portador a culpa de a ter. “A população em geral não vê a obesidade como uma doença, mas como resultado de um comportamento”, regista a médica endocrinologista Carolina Neves, da Associação Protectora dos Diabéticos de Portugal (APDP). E este “é um mito que se precisa de destruir”, salienta Cláudia Ruivo Carreira, psicóloga clínica no Hospital CUF Descobertas, em Lisboa.
A debater-se com excesso de peso desde muito pequena, o quadro da Marta, conta a mãe, Catarina Beja, sempre esteve presente, mas agravou-se na passagem do 1.º para o 2.º ciclo, atingindo um estado de pré-obesidade, numa altura, em que, avalia a progenitora, as crianças passam a maior parte do dia sentadas, quer na sala, quer nos recreios, sem que haja o incentivo à actividade física, a se mexerem. E, depois, a pandemia só veio piorar a situação, com um decréscimo da actividade física, uma maior exposição a ecrãs e a comida a ganhar protagonismo no dia-a-dia de quem estava fechado em casa.
No entanto, nem sempre a boa alimentação e a actividade física chegam para controlar os sintomas da obesidade, uma doença crónica, sem cura, sendo apenas possível tratar o sintoma (o excesso de peso). Ou seja, mesmo quando alguém com obesidade consegue controlar o peso, isso não significa que se livrou da doença. Além disso, trata-se de uma doença multifactorial, o que quer dizer que as causas são diversas, sendo essencial identificá-las para que se possa tratar.
Por exemplo, aponta Carolina Neves, “hoje sabemos que 70% do peso em adulto é determinado pela genética”. A desregulação do apetite e do gasto energético são controlados pela hormona que controla a fome, a grelina, e pela que determina o nosso estado de saciedade, a leptina. Em conjunto, estas duas hormonas podem enviar informações contrárias às necessidades do corpo: ou seja, a grelina pode dizer-nos que estamos cheios de fome, mesmo quando acabámos de comer, enquanto a leptina, que deveria enviar enviar sinal de saciedade, não o consegue fazer, dada a resistência à sua acção nestas pessoas. E, nestes casos, destaca a endocrinologista, “a fome vai para lá da nossa força de vontade”, podendo caracterizar-se pelo prazer que proporciona, accionando a dopamina, mas também assumindo uma forma “visceral e incontrolável”.
Depois, há factores psicológicos e emocionais. “A alimentação é relacional”, destaca Cláudia Ruivo Carreira, que explica que, muitas vezes, a forma como nos relacionamos com a comida pode assentar em “experiências adversas na infância: luto, divórcio, violência doméstica, dificuldades económicas, abusos sexuais…”. Mas também na forma como, desde muito cedo, as crianças são ensinadas a associar os alimentos às emoções: um doce como recompensa; a proibição da sobremesa como punição — e esta estratégia, declara, “não é uma boa ideia”.
Algo que todas as pessoas com quem o PÚBLICO falou estão de acordo é na importância da educação alimentar, desde a introdução dos sólidos ao bebé, mas sobretudo quando o pequenote começa a partilhar as refeições da família. “No primeiro ano de vida, a alimentação tem um papel muito importante, e normalmente os pais seguem as orientações à risca”, conta a pediatra da APDP, Raquel Coelho. “A maior parte dos problemas surge quando a criança começa a comer com a família, sobretudo quando há opções menos saudáveis, como alimentos ultratransformados, refrigerantes e sumos, excesso de sal.” No entanto, justifica Carolina Neves, “o ambiente em que vivemos é propício ao consumo de alimentos ultratransformados”, chamando a atenção para a necessidade de haver uma maior “responsabilidade das entidades públicas para controlar açúcares”, assim como uma maior “regulação da publicidade àqueles alimentos”.
Catarina Beja, que viu a sua mãe lidar com a doença da obesidade e que também se vê na necessidade de controlar o que come e ter uma actividade física para manter o peso em níveis saudáveis, concorda que deve haver uma intervenção das entidades, nomeadamente nas escolas, onde considera haver ainda “muitos educadores e professores que estão pouco preparados para lidarem com esta questão”. No caso da filha Marta, Catarina esforçava-se em casa por impor uma alimentação saudável, mas percebia que, desde o pré-escolar, abundavam as papas e os iogurtes cheios de açúcar, entre outras opções não-recomendáveis.
Junto dos médicos, que, desvalorizando, receitavam “fechar a boca” e “ter uma vida activa” para controlar o peso da filha, também não encontrou ajuda. “A comunidade médica tem de ter uma abordagem diferente”, observa, apontando que há dois pesos e duas medidas nas doenças alimentares: “Enquanto a anorexia, por exemplo, é sempre urgente — e é! —, a obesidade tem de chegar a um estado muito grave, de obesidade mórbida, para se considerar uma intervenção médica.”
“Toda a gente me dizia que era uma exagerada”, recorda ao PÚBLICO, confessando que, nesses dias, se sentia “sozinha e julgada”, como se estivesse constantemente a “remar contra a maré”. Foi precisamente para “lutar contra o sentimento de solidão” que Mário Silva viria a criar, em 2010, a Associação Portuguesa Contra a Obesidade Infantil (APCOI), e foi nesta que Catarina Beja acabaria por encontrar o apoio que precisava, tornando-se voluntária, depois de ter participado com Marta, no início de 2011, na primeira Corrida da Criança, “evento criado para passar a mensagem de que a obesidade é uma doença e que pode tocar à porta de qualquer pessoa”, mas também destinado a chamar a atenção para o apoio de que as famílias precisam.
Apoiar as famílias
Mário Silva é presidente da APCOI, mas nunca teve problemas com o seu próprio peso. No entanto, tendo sido cuidador da avó, que padecia da doença, ouviu demasiadas vezes que a obesidade dependia da força de vontade. E isso era coisa que não faltava àquela familiar. “A minha avó não era sedentária: caminhava muito durante o dia e o seu trabalho era físico; fazia todo o tipo de dietas. Mas toda a genética trabalhava contra ela.” E mesmo que a obesidade já integrasse, na época, a lista de doenças, “não havia reconhecimento da necessidade de acompanhamento psicológico, de um nutricionista — era [uma doença] basicamente tratada por cirurgiões, e só numa fase muito avançada”.
A avó de Mário foi diagnosticada com um cancro do intestino, um dos vários cancros relacionados com a obesidade. E o neto depressa percebeu que, se tivesse sido tratada à obesidade, talvez o cancro nunca se tivesse manifestado — e a avó tivesse conseguido viver mais anos e com melhor qualidade de vida. A endocrinologista Carolina Neves concorda que a obesidade é uma doença “subdiagnosticada” e que “o estigma [associado] continua a impedir que se peça ajuda”, ao mesmo tempo que “continua a não ser tratada como a doença crónica que é”.
“Há fármacos, devidamente testados e aprovados, desde os 12 anos, para tratar a obesidade, mas nenhum é comparticipado”, aponta. Só que, ressalva, “adiar o tratamento ou pensar apenas nos comportamentos pode ser dramático” e acabar por “custar ainda mais dinheiro”, tendo em conta todas as doenças que poderiam ser evitadas se a obesidade fosse controlada.
É este o mote de uma petição, na qual se destaca que a Organização Mundial de Saúde explica que “as causas da obesidade são muito mais complexas do que a mera combinação de uma dieta que não é saudável e falta de exercícios” e que a doença “causa mais de 1,2 milhões de mortos por ano na Europa, além de aumentar os riscos de doenças não-transmissíveis, como cancro, doenças cardiovasculares e diabetes mellitus [tipo 2]”. Neste último caso, destaca a endocrinologista, embora atinja geralmente pessoas acima dos 40 anos com excesso de peso ou obesidade, tem-se assistido a um aumento significativo em jovens com menos de 20 anos.
“Nestas idades, importa salientar que, desde a pandemia, há uma maior exposição aos ecrãs e menos actividade física, mas também uma desregulação normal do sono, a que se deve estar atento.” É que o sono, explica a especialista, “influencia o apetite e a capacidade de escolha”. E, numa idade em que se está a dar um boom hormonal, não é de estranhar que a capacidade de decisão seja condicionada pelo stress.
Roleta russa
Quando percebeu que a causa do cancro da avó era a obesidade, Mário Silva dedicou-se a estudar a doença, lendo tudo o que encontrava e falando com especialistas. “Entrei na obsessão de tentar salvar a minha avó — entre outras coisas, fui vegan mais de um ano, levando-a a ter esse tipo de alimentação — e, ao mesmo tempo, fui compreendendo que esta doença pode ser uma grande roleta russa.”
No entanto, ao longo dessa demanda, percebeu que o autocuidado e uma maior literacia de saúde são essenciais a uma intervenção precoce, com a qual se pode evitar diversas patologias — e foi para responder a esta necessidade que, com um conjunto de especialistas de várias áreas e com o apoio da equipa de investigação da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, fundou a APCOI. “A minha avó ainda assistiu à fundação da associação”, recorda ao PÚBLICO.
Além da Corrida da Criança, “que tem sido um sucesso”, a APCOI é responsável pelo projecto Heróis da Fruta, que, na edição deste ano, está presente em mais de mil escolas, “cobrindo 70% dos municípios e chegando a quase cem mil crianças”, o que, além de incentivar a educação alimentar, também serve o propósito de sensibilizar a comunidade docente para o tema. “Os educadores e professores mostram-se envolvidos e recebem o projecto de braços abertos”, declara.
Com iniciativas dedicadas aos miúdos, Mário percebeu que podia fazer mais para “descomplicar a doença”, um pedido que lhe chegava muitas vezes por parte das famílias com crianças com sintomas de obesidade.
Foi assim que nasceu o livro infantil Mamã, O Que é Obesidade?, lançado na semana passada e que assina com Catarina Beja, que entretanto fez uma pós-graduação em Comportamentos Alimentares e Obesidade, e com Marta Beja Coelho, tendo beneficiado da revisão científica de pediatras, psicólogos e outros especialistas da Associação Europeia para o Estudo da Obesidade. As vendas do livro, disponível no site www.apcoi.pt, revertem como donativo para a APCOI, a Adexo – Associação de Doentes Obesos e Ex-obesos de Portugal e a Apobari — Associação Portuguesa dos Bariátricos.
Educar sem proibir
“O rastreio da obesidade infantil deve fazer parte da saúde de todas as crianças e jovens”, diz a pediatra Raquel Coelho ao PÚBLICO, sublinhando o facto de esta “doença crónica e progressiva se associar a complicações de saúde multissistémicas”. No caso dos mais novos, pode ir desde alterações no colesterol e na tensão arterial até complicações ortopédicas, não esquecendo as “repercussões a nível da saúde mental, com a criança a sofrer de discriminação e de rejeição social, podendo perturbar a sua vida social, mas também o rendimento escolar”. Daí que defenda que é essencial identificar a obesidade precocemente. No entanto, para tal, destaca: “É fundamental a consciencialização da obesidade como doença”, sendo que, até aos 12 anos, a intervenção faz-se sobretudo na educação para os hábitos saudáveis.
Também a psicóloga Cláudia Ruivo Carreira é a favor de que se eduque para a saúde, mas sublinha que a “restrição alimentar pode ser prejudicial”. Ou seja, o mais importante é deixar que a comida tenha a importância que tem — fornecimento de energia e nutrientes —, desvinculando-a das características emocionais que assume. E isso começa desde logo por se ser mais flexível: “Temos que aprender a ser mais gentis connosco e com as nossas crianças”, opina.
Para a especialista, é preciso procurar o equilíbrio, não criando grandes restrições que podem resultar em comportamentos negativos. Afinal, também na alimentação, “o fruto proibido é o mais apetecido”. Daí que a ideia de permitir guloseimas apenas em festas possa fazer mais mal que bem: além de poder compensar e comer em demasia, a criança estará a associar os doces a um momento feliz, o que poderá ter influência na forma como se irá relacionar com a comida em adulto.
Terá sido esse, de certa forma, o caso da radialista Marta Ventura, uma voz que durante mais de 20 anos se fez ouvir na Renascença e que assina o prefácio do livro Mamã, O Que é Obesidade?. A comunicadora, que diz que desde que se lembra sempre foi gorda, recorda ouvir demasiadas vezes “não comas isto e aquilo” ou de escutar repetidamente que “se comesse menos conseguia emagrecer”.
Também não se esquece da forma como era gozada pelos primos ou pelos colegas da escola. O resultado foi uma série de compulsões alimentares que a levaram, em 2018, pouco tempo antes de decidir submeter-se à cirurgia, a pesar 128 quilos, com 1,63m, números que correspondiam a um IMC de obesidade mórbida, ao mesmo tempo que sofria de apneia e a desejada gravidez dependia da perda do peso.
A cirurgia, afiança, é milagrosa nos primeiros dois anos. “Lembro-me de ficar maldisposta só com o cheiro de batatas fritas”, recorda. Mas, à medida que o tempo passa, as compulsões não desaparecem só por causa da cirurgia — e, por isso, é tão comum ver quem acaba por recuperar o peso. “O corpo regista o máximo de peso atingido e, movido pelo instinto de sobrevivência, está sempre a tentar voltar a ele”, explica a endocrinologista Carolina Neves.
No caso de Marta Ventura, que, entretanto, passou para cerca de metade do máximo do seu peso e teve o tão desejado bebé, a cirurgia não lhe curou as compulsões alimentares. E o que tem sido essencial para não regredir no seu processo é a psicoterapia, sem a qual, diz, provavelmente nem seria capaz de dar o seu testemunho.
Cláudia Ruivo Carreira também defende que o acompanhamento psicológico é essencial para manter a doença controlada. No entanto, no caso das crianças e adolescentes que recebe em consulta, avalia que esse acompanhamento tem de ser estendido às famílias, com as quais é imperativo criar uma relação de confiança.
Até porque, relata, “é mais comum ser procurada por outros motivos” que não são a obesidade, mesmo que esta seja visível, defendendo a importância da saúde materno-infantil em identificar os sinais de alarme e referenciar. É que, reforça, “há uma crítica social muito grande porque se acha que é manejável pelo próprio quando quase nunca o é — há muitos factores que contribuem para a obesidade”.
Por isso, em primeiro lugar, a psicóloga defende que é preciso “abolir a atitude crítica”, seja ela verbalizada por profissionais de saúde ou pelos pais, já que, na maioria dos casos, o chamar a atenção para o excesso de peso “não espevita”; apenas faz com que a criança ou o adolescente se “retraia e regresse ao comportamento cíclico”, onde encontra conforto.
A prevenção, concordam todos os profissionais, é mesmo o melhor caminho. A começar, diz Cláudia Ruivo Carreira, por voltarmos a comer em família, desligando o televisor e mantendo os telemóveis longe da mesa de refeições. E isso pode ser feito desde muito cedo, a partir do momento em que os bebés já se sentam, mesmo que ainda não partilhem da ementa dos crescidos.
Tratar de criar momentos harmoniosos à refeição também implicará saber escolher bem as lutas, refere, valorizando uma alimentação saudável, mas também defendendo que é preciso dar espaço para a criança não gostar de alguma coisa ou não querer comer. “É a tal importância de se ser gentil”, recorda, ao mesmo tempo que enumera alguns sinais de alerta a que os pais devem estar atentos: aumento súbito de peso, manifestações de preocupação com a aparência física, alterações de humor, nomeadamente irritabilidade, compulsão ou rejeição alimentar.
Se a criança ou o jovem apresentar um quadro de obesidade, é de reter que qualquer mudança, para ser efectiva e bem-sucedida, tem de ser feita de forma “lenta e progressiva”. E antes de ser sugerida qualquer alteração no quotidiano é imperativo conhecer bem o contexto sociocultural e económico da criança. “As coisas não podem ser impostas, deve ser dado tempo.”