Afrobeats com “essência” Nelson Freitas: Black Butterfly
Ao sétimo álbum, o músico holandês de origem cabo-verdiana rodeou-se de vários compositores e produtores internacionais, que já colaboraram com nomes como Rema, Davido ou Beyoncé.
Numa das sessões do Jardim de Verão da Gulbenkian de 2023, o DJ e produtor Shaka Lion lança, num crescendo insinuante e lúbrico, a apelar gentilmente ao flirt, uma remistura de Bo tem mel. Os portugueses, independentemente da etnia e do contexto social, têm a letra na ponta da língua, a anca a virar para o sítio certo. Os estrangeiros sacam o Shazam para identificar que canção infalível é aquela, que mistura inglês, crioulo cabo-verdiano e português, e vão na onda.
Bo tem mel, lançada em 2013, foi a música que cimentou a carreira de Nelson Freitas, cantor, compositor e produtor holandês de origem cabo-verdiana que há uma década, a par de Anselmo Ralph, ajudou a tornar a kizomba num fenómeno pop em Portugal.
“Eu vi o mercado português crescer pouco a pouco. No início, dava um concerto numa discoteca só para africanos e afrodescendentes. Depois, foram aparecendo cada vez mais portugueses brancos. Mais tarde, eu já estava no Coliseu dos Recreios [em 2013] e no Meo Arena [2014]”, recorda Nelson Freitas em entrevista ao Ípsilon.
Se em 2012/2013 “as coisas começaram a mudar”, também é certo que, nessa altura, as músicas de raízes africanas ainda eram olhadas de lado por muita gente – incluindo por certos circuitos, da indústria musical à imprensa, que têm o poder de definir aquilo que é considerado ou não como “bom gosto”.
Hoje, a conversa é outra. Fruto de um processo em curso de descolonização do pensamento e da cultura, e de uma sociedade global onde as diásporas africanas têm ganho mais voz e influência apesar de todos os detractores, os géneros de genealogia africana dominam as tendências da música, os serviços de streaming, as rádios. Em particular, o afrobeats, esse grande chapéu onde cabe a música popular contemporânea da África Ocidental, numa fusão de diferentes linguagens, do dancehall ao soca, do jùjú ao highlife, do hip-hop ao r&b.
E é no afrobeats que está ancorado o novo e sétimo álbum de Nelson Freitas. Em Black Butterfly, o músico muda de orientação e vai além do cruzamento entre kizomba, coladeira-zouk, R&B e hip-hop que tem vindo a caracterizar o seu trabalho. “Sempre que eu faço um disco passo muito tempo a fazer pesquisas. Não gosto de repetir o que já fiz, mesmo que tenha sido um grande sucesso”, afirma.
Black Butterfly é quase um disco colectivo. “Normalmente escrevo 90% das minhas músicas sozinho, mas aqui foi diferente.” Nelson Freitas rodeou-se de vários compositores, letristas, músicos e produtores, sobretudo nomes de referência da cena afrobeats. Tudo começou num writing camp em Cabo Verde, para o qual foi convidado por Teddy Riley, influente produtor norte-americano que trabalhou com músicos como Michael Jackson. Foi um encontro especial para Nelson: por um lado, o álbum Thriller, de Michael Jackson, foi a sua primeira obsessão musical, quando ainda era “muito novo”; por outro, Teddy Riley era um dos membros da banda de R&B e new jack swing Guy, que o músico holandês ouvia regularmente, a par de Nas, Tupac, Notorious B.I.G. ou Public Enemy.
Desse encontro com Teddy Riley nasceu o single que dá nome ao disco, Black butterfly, afro-pop perlado a R&B-soul americano dos anos 80 e 90. Foi também nessas sessões de estúdio e composição em Cabo Verde que Nelson Freitas conheceu o zimbabuense Daecolm Holland, cúmplice de Chris Brown, com quem acabou por fazer várias etapas deste álbum. Incluindo o single Hero, afrobeats de matriz nigeriana, mas afinado ao ritmo mais pausado da kizomba, com uma doçura nostálgica a fazer lembrar Mad over you, do nigeriano Runtown. O videoclipe conta já com mais de três milhões de visualizações. “Nós encontrámo-nos para fazer essa música porque o Daecolm perdeu um voo e quis fazer mais uma canção. Saiu em duas horas e hoje é um grande sucesso, sobretudo em África”, diz Nelson Freitas.
Entretanto, juntaram-se ao disco nomes como o badalado produtor nigeriano Ozedikus Nwanne, que já trabalhou com Rema e Oxlade; o compositor e produtor nigeriano Blaisebeatz, que tem no seu currículo colaborações com Davido, CKay ou BNXN; o cantor e compositor britânico Arrow Benjamin, que co-escreveu duas canções de Beyoncé; ou o produtor, cantor e compositor nigeriano Kel-P, co-escritor de African Giant, de Burna Boy, disco vencedor de um Grammy que marcou a ascensão de uma pop global de matriz africana, tendo também a sua assinatura em outros álbuns-chave do afrobeats, como Made in Lagos (2021), de Wizkid, e Timeless (2023), de Davido.
“A intenção nunca foi juntar muita gente. Eu podia ter feito clique apenas com uma ou duas pessoas, mas acabou por acontecer com várias”, explica Freitas. O cantor não esconde que ter todos estes nomes no disco é um passo estratégico para chegar a mais mercados e mais públicos, mas “primeiro do que isso está a vibe”.
“Antes de eu conhecer estas pessoas, eu nem sabia que algumas delas tinham colaborado com certos nomes. O mais importante é o clique e a música fluir; se não, não há nada”, sublinha o músico radicado em Roterdão, que, além de Portugal e dos PALOP, tem dado concertos nos Estados Unidos, França, Suíça ou Inglaterra. “Sinto que o mundo está muito mais aberto para estas sonoridades e sinto que eu também fiz parte dessa mudança. Agora vamos empurrar ainda mais.”
“Mais versátil”
Já há alguns anos que Nelson Freitas está de olho no afrobeats. No álbum Sempre Verão (2019), convocou o DJ, compositor e produtor sul-africano DJ Maphorisa para a canção Set me alight, e em Dpos D’Quarentena (2021) aliou-se a Mr Eazi, referência da música nigeriana contemporânea, para criar Tellin me something.
Em Black Butterfly é evidente o ascendente do afro-pop de travo nigeriano (Lagos, capital da Nigéria, é o grande viveiro do afrobeats), mas Nelson Freitas afirma que procurou “manter” a sua “essência”. No trabalho em estúdio com os vários artistas, “a dica era sempre fazer Nelson Freitas 2.0”.
Apesar de algumas canções seguiram uma cartilha demasiado formulaica do afrobeats, noutras, como Don’t let me go ou Heart desire, sobressaem os alicerces da kizomba, que para Nelson Freitas ocupa um lugar de relevo no caldeirão sincrético e transfronteiriço do afrobeats, ele próprio uma consequência dos muitos trânsitos e atravessamentos afrodiaspóricos.
“A kizomba que nós conhecemos já mudou; está sempre a mudar e pode estar em todo o lado”, diz. “Consegues ouvir sonoridades de kizomba em músicos nigerianos, por exemplo. Só que quando eles cantam é visto como afrobeats, quando eu canto é visto como kizomba”, refere o músico, assinalando que não gosta de ser “metido numa caixa” nem associado “a um tipo de música”.
Em Satisfy you, Nelson Freitas e Kel-P vão até ao dancehall, enquanto Nightcrawler trepa pelo corpo através do amapiano, o som do momento – um derivado da música house nascido na África do Sul que integra elementos do gqom, sob uma reconfiguração mais melódica e desacelerada. “Não podiam faltar” também sonoridades tradicionais cabo-verdianas (“nunca esquecer as raízes”), emparelhadas com o amapiano em Assim vou e a levantar fervura em Stay away, cantada a meias com o rapper Loreta. Stay away mostra, de resto, como Black Butterfly poderia ganhar com mais complexidade e fusões rítmicas, e como falta alguma pujança no trabalho de voz, um tanto ou quanto monocromático ao longo do álbum.
Aos 48 anos, Nelson Freitas sente que voltou aos discos “um pouco mais versátil, um pouco mais maduro”. E diz, sem ponta de hesitação: “Este álbum é mesmo eu”.