Saúde pública, responsabilidade social e democracia

O descontentamento da sociedade tem sido terreno fértil para retórica populista de descredibilização da ciência. Devem os investigadores de saúde pública ser imparciais perante esta retórica?

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Megafone P3: Saúde pública, responsabilidade social e democracia Rui Gaudêncio / Arquivo
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Vivem-se tempos difíceis. Atualmente, as populações deparam-se com vários desafios: desde o agravamento das consequências das alterações climáticas e das guerras, ao efeito da pandemia no aumento do custo de vida. Estes fatores contribuem para um cenário de instabilidade social e económica, mas também para o crescimento de ideologias e políticas de extrema-direita, no mundo, na Europa e em Portugal. Além disso, as políticas economicistas têm falhado em responder à adversidade vivida por muitas pessoas, principalmente aquelas que vivem em situações de vulnerabilidade. Este facto, aliado ao descontentamento generalizado da população, tem levado parte da sociedade a crer que a solução se encontra na retórica populista da direita radical que propõe ideias simples para problemas complexos. Ademais, a promoção da segregação (“nós” versus “eles”) e a criação do medo têm ganhado protagonismo por criar culpados para as dificuldades vividas.

Nesta retórica, a ciência tem sido descredibilizada pelas correntes de extrema-direita. Recordemo-nos, por exemplo, do negacionismo contra as vacinas e contra as alterações climáticas. A desinformação perante o processo científico terá acentuado a divisão política versus ciência – uma outra forma da retórica “nós” versus “eles”. E porque é que a ciência tem sido um alvo da extrema-direita? Pelos factos que consegue demonstrar.

Consideremos a saúde pública, a ciência que visa proteger e promover a saúde das populações. Ao longo de décadas, tem sido demonstrado que a saúde da população é indissociável da melhoria das condições socioeconómicas, do acesso justo a serviços de saúde, educação e cultura, do combate à discriminação e estigma, da igualdade de género, de condições de trabalho dignas, e da salvaguarda dos direitos de todas e de todos, mas em especial das pessoas mais vulneráveis e migrantes. Em suma, para garantir a saúde universal é crucial que se assegure o direito a uma vida digna e com qualidade. A saúde da população portuguesa só será assegurada em plenitude se se confirmarem estas condições. Por sua vez, também já foi demonstrado que estas condições não promovem apenas a saúde, mas possibilitam ainda o desenvolvimento social e económico do país.

Perante estes factos, deverão investigadores ser neutros na área da saúde pública? Indubitavelmente, os resultados científicos devem ser transmitidos com a maior clareza e imparcialidade possível, não cabendo ao cientista manipular os seus resultados ou enviesar as mensagens para favorecer os seus ideais. Mas também, a vontade de melhorar a saúde da população que move esta área da ciência não é, inerentemente, neutro. Se o que verificamos é que a saúde da população beneficia de políticas públicas que visa colmatar as desigualdades sociais e a promoção de igualdade de oportunidades, podemos ser imparciais perante o ataque a estes fundamentos? Não teremos nós a responsabilidade social de lutar pelo que os dados científicos demonstram e levá-los para a prática?

Não pode ser com imparcialidade que assistimos a discursos que promovem a discriminação de pessoas de comunidades minoritárias, injustiça social, negação das alterações climáticas ou acesso injusto à saúde e à educação de qualidade para todos e todas. Acreditamos que o papel da saúde pública é investigar questões relevantes para a sociedade, aproximar-se e promover o debate com a sociedade civil, incluindo as suas visões e preocupações, e fazer da ciência uma forma de luta factual contra as desigualdades sociais que afetam a saúde das pessoas. E este papel só pode ser devidamente desempenhado através de um modelo justo de financiamento da ciência que assegure os recursos necessários para fazer ciência e para a difundir para a sociedade civil e decisores políticos.

A Organização Mundial da Saúde advoga que a saúde não se esgota na ausência de doença, e que compreende um bem-estar físico, mental e social. Saúde é viver com qualidade, em pleno direito de existir independentemente do berço, orientação sexual, religião, política, cor da pele, e com acesso justo a habitação, cuidados de saúde, educação e cultura. É viver com dignidade.

Nos 50 anos do 25 de abril de 1974, torna-se evidente que para garantir a saúde pública é imperativo votar e reforçar a qualidade da democracia, para que possamos continuar a viver em liberdade e lutar pela saúde de todas e de todos.

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