Postal de Ponta Delgada: Natália Correia, Libertação e Absoluto
Os versos desdobram-se como ondas que banham a ilha. Ilha, símbolo de isolamento e proteção, refúgio seguro e intocado, lugar de paz e resguardo contra influências externas.
“Que ordem, por trás dos limites pensáveis do universo, dispôs o meu nascimento nesta ilha?”, confronta-nos Natália Correia à entrada da exposição Libertação e Absoluto, com a qual a Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada homenageia a escritora açoriana no centenário do seu nascimento. Em exibição até 16 de março, data do seu falecimento, a mostra revela milhares de documentos, fotografias e escritos inéditos que convidam a explorar as camadas profundas da mente da poetisa.
“Que ordem, por trás dos limites pensáveis do universo, dispôs o meu nascimento nesta ilha?”. E a pergunta ecoa como uma melodia misteriosa, despertando-nos para a essência da conexão entre a poetisa e a sua terra natal.
“Foi por línguas de fogo que aprendi a falar”, acrescenta Natália, sugerindo ter sido batizada pelo vulcão adormecido, porventura a sua inspiração para a linguagem inflamada que desenvolveu e com a qual deu corpo ao fogo interior com que desbravava o normal e a acomodação, e incendiava a imaginação, iluminando os recantos mais escuros da alma humana.
“Sou da ilha das línguas de fogo. Com elas aprendi a metrificar o espírito. O indizível”, confessa a poetisa, revelando as ferramentas que moldam a sua expressão artística. Foi com os elementos visíveis e invisíveis da ilha que construiu a poesia que desafia o indizível.
Mais à frente na exposição, e em lugar de destaque, encontramos um busto em gesso de Natália Correia, autoria de Júlio de Sousa (1906-1966). Natália olha firmemente para cima, com longos cabelos negros a cobrir os seios, indiferente a quem a observa. Demorei-me largos minutos a olhá-la. E também a fotografei. Enquanto escrevia este texto, imprimi a fotografia e colei-a no topo do ecrã do computador. (Senti-me observado mais de uma vez)
Por baixo do busto, um trecho do poema Mãe-ilha: “Mãe ilha mãe cúmulo mãe água”. Expressões que simbolizam um vínculo profundo e visceral entre a poetisa e a sua terra natal. A ilha é mãe, mas também cúmulo, pináculo de experiências e desafios que a constituem. No mesmo espaço, ao fundo, lê-se “Onde o mar, com paredes de vidro, rodeia o centro inviolável: A Ilha” – poema A ilha do Arcanjo. Os versos desdobram-se como ondas que banham a ilha. Ilha, símbolo de isolamento e proteção, refúgio seguro e intocado, lugar de paz e resguardo contra influências externas. (Começo a perceber melhor o olhar indiferente do busto de Natália)
Retorno ao início da exposição, também local de saída. A poetisa despede-se: “Absoluto (...) é o ponto de união dos mundos antagónicos”.
Absoluto: ponto convergente de contrastes, síntese harmoniosa de dualidades: vida e morte, luz e sombra, paixão e a resignação. Janelas abertas para a contemplação da ordem e da desordem, do visível e do oculto, que guiam cada nascimento e cada história.
Repare, por favor, na fotografia que ilustra esta crónica. Demorei-me a captá-la. Pretendia fazer jus ao espírito de Natália, especialista no jogo de luz e de sombras. Apontei a objetiva para o lugar mais iluminado, o rosto da poetisa, disparei e segui caminho. Já em casa, ao abrir a fotografia, apercebi-me da porta aberta ao fundo do corredor escuro que desvenda um fragmento de chão iluminado, um pilar amarelo e os primeiros degraus da escadaria que nos leva aos andares superiores da biblioteca e às prateleiras repletas de livros.
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Composição fotográfica: Natália Correia
O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990