Mortes, ataques e medo deixam aldeia de 11 mil pessoas deserta em Moçambique

Mmala, em Cabo Delgado, foi alvo de dois ataques semelhantes àqueles que, no passado recente, for reivindicados pelo Daesh.

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Residentes de Mmala em fuga, após os ataques recentes à aldeia LUSA/Paulo Julião
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Mmala, aldeia moçambicana em Cabo Delgado, tinha mais de 11 mil pessoas, mas dois ataques terroristas levaram a população a fugir nos últimos dias com crianças ao colo, carregando à cabeça o pouco que escapou à destruição.

“Primeiro passaram e mataram duas pessoas, passaram em redor da aldeia, passou um dia; no dia seguinte passaram de novo e mataram seis pessoas e queimaram um cubículo do hospital e da escolinha”, descreve à Lusa Lourenço Ancuara, o chefe da aldeia.

Face a isto, a solução tem sido fugir à pressa, nomeadamente para a vila de Chiùre, hoje o último reduto de alguma segurança nas proximidades. Ainda assim, uma viagem de três dias a pé, por campos agrícolas e estradas, num movimento de milhares de pessoas em simultâneo.

Mmala situa-se no posto administrativo de Chiùre-Velho, o mais afectado pelos ataques terroristas na província de Cabo Delgado nos últimos dias, e dista 50 quilómetros de Pemba, capital provincial, percurso que leva mais de três horas a percorrer de carro, numa estrada em permanente ameaça de novos ataques.

Lourenço Ancuara, acabado de chegar à vila de Chiùre, conta que a aldeia ficou deserta: “Ninguém, todos nós abandonámos lá (…) Tenho lá 11.014 habitantes. E não está ninguém lá, abandonaram. Ninguém trouxe nada, saímos só assim mesmo”.

Chegam a pé, de bicicleta, algumas crianças de poucos anos ainda a dormir, depois de noites de medo.

Os ataques ao longo da última semana deixaram a aldeia, onde todos, nas várias comunidades, se dedicam às machambas da agricultura, vazia.

Por agora, ainda não há esperança de regresso e o chefe da aldeia só pede ajuda para os milhares que fugiram de Mmala para outras povoações: “Ainda não temos apoio, não sei se vão nos dar”.

“Chegámos aqui sem nada”

Em Mujipala, comunidade da aldeia de Mmala, vivia Sousa Américo, um camponês de 40 anos. Ao fim de três dias de caminhada com os cinco filhos e centenas de outras pessoas, chegou a Chiùre.

“Lá não mataram ninguém, só que queimaram as 47 casas. Está tudo vazio (…) Chegámos aqui sem nada, estamos a sofrer de fome e a pedir apoio”, desabafa, ainda à entrada de Chiùre, antes de partir para um dos três campos de reassentamento provisórios em escolas que, segundo dados da autarquia, já recebem actualmente 13.000 deslocados na vila, além dos que procuram abrigo em casas de amigos e familiares.

“Lá ninguém está mais. Está tudo vazio”, descreve, receoso com o futuro, enquanto pede apoio. “A população de lá está aqui sem nada. Estamos quase no alto mar”, lamenta ainda Sousa Américo.

Mustafa Emílio, de 45 anos, também acaba de chegar a Chiùre, que antes desta onda de deslocados contava com 75 mil habitantes. Chegou à espera de refúgio numa casa de familiares.

“Não conseguimos trazer nada. Saímos sem nada”, desabafa.

Pelo menos, diz-se tranquilo por ter conseguido trazer, numa caminhada de mais de três dias de muitos medos, a mulher, os filhos e as irmãs.

Só não percebe porquê: “Eu não sei o que esses malfeitores precisam. Só nos fazem sofrer”.

Após vários meses de relativo regresso à normalidade nos distritos afectados pela violência armada, a província de Cabo Delgado, norte de Moçambique, tem registado há algumas semanas novas movimentações e ataques de grupos rebeldes, provocando novas vagas de deslocados.

Na quinta-feira, o Presidente moçambicano, Filipe Nyusi, disse, numa visita a Cabo Delgado, que as novas incursões rebeldes resultam de tentativas de grupos armados de recrutar novos membros, considerando que no mês passado a província registou “muita movimentação de terroristas”.

“Eles não conseguem mais fazer recrutamentos nesta província por muitas razões, a consciência [das populações] e então eles querem ver se furam para trazer outros membros para aqui (…) Eles queriam levar crianças e jovens e não foram felizes”, declarou Filipe Nyusi, momentos após orientar uma reunião do Governo em Pemba, capital provincial.

O primeiro-ministro de Moçambique, Adriano Maleiane, admitiu, entretanto, a necessidade de apoio adicional a Cabo Delgado face à fuga de dezenas de pessoas devido aos novos ataques registados naquela província, situação que está a criar “problemas de alimentação”.

A nova vaga de violência armada na província de Cabo Delgado dominou os discursos de reinício das sessões plenárias do Parlamento, com a oposição exigindo que o executivo encontre mecanismos de diálogo com os insurgentes.

O grupo extremista Daesh reivindicou nas últimas semanas vários ataques e vítimas mortais, sobretudo no Sul da província de Cabo Delgado.

A província enfrenta há seis anos alguns ataques reivindicados pelo Daesh, o que levou a uma resposta militar desde Julho de 2021, com apoio do Ruanda e da Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral (SADC), libertando distritos junto aos projectos de exploração de gás.