A tradição começou em 1985, quando a Herdade do Esporão, no Alentejo, desafiou pela primeira vez um artista, Dórdio Gomes, a criar rótulos para as suas garrafas de vinho Esporão Reserva e Private Selection. Os nomes de convidados conceituados da arte portuguesa (e alguns estrangeiros) sucederam-se ao longo de décadas: Júlio Pomar, Manuel Cargaleiro, Joana Vasconcelos, Lourdes de Castro, Júlio Resende…
No entanto, quando a escolhida para ilustrar os rótulos foi Paula Rego, as coisas não terão corrido como pretendido. Na altura, “a direcção do Esporão tinha uma visão mais conservadora”, começa Rui Brito, responsável pela Galeria 111, em Lisboa, que comemorou este mês 60 anos e que representa o legado da pintora em Portugal. “Penso que estariam à espera de que ela fizesse algo meramente ilustrativo. Mas quando se convida Paula Rego, há uma componente de risco e ela ia a fundo nas questões”, comenta.
A pintora — que morreu em Junho de 2022 em Londres, onde vivia — terá apresentado três propostas de rótulos, três “litografias” com data de 2007, pintadas à mão. “Acabou por trabalhar um tema que era grave e importante na sociedade portuguesa”, continua o galerista.
Numa das imagens, intitulada Dar de Comer, uma mulher dá uma garrafa de vinho a um bebé, como se fosse um biberão. Noutra, com o nome Dois Amores, uma mãe embala uma garrafa, em vez de dar atenção ao filho, aos seus pés. Na terceira, O Vinho, está uma “mulher vestida de homem, já numa situação alcoólica e com a garrafa ao lado, tombada, a derramar o néctar dos deuses”, descreve Rui Brito.
O resultado não terá agradado a quem fez a encomenda. Para o responsável da Galeria 111, chamar-lhe “censura” seria exagerado. “Não foram aceites”, resume o filho de Manuel de Brito, o fundador da 111. “A Paula Rego estava muito divertida”, recorda. “Por um lado, não ficou nada satisfeita e sei que a incomodou. Mas, ao mesmo tempo, estava a trabalhar um tema que ela achou super interessante e acabou por desenvolver uma série muito maior de litografias. É aí que surge o convite para o João de Melo escrever o texto à volta disso.”
Terá sido a partir desse episódio que surgiu O Vinho, um livro editado em Dezembro de 2007 pela Dom Quixote, com um conto de João de Melo e uma dezena de ilustrações de Paula Rego sobre a bebida. “Muitos [dos desenhos] não eram inéditos, mas ela fez alguns de propósito para o texto”, garante o escritor açoriano. “Creio que, sobretudo, para a parte final do conto.”
O livro, a rondar os 40 euros, e já difícil de encontrar, acompanha “uma reunião de amigos numa tasca, a celebrar o vinho”, descreve João de Melo, cada um com uma relação diferente com a bebida. A história acaba por se centrar num deles, o narrador — “o mais sóbrio de todos”, descreve-se na conto —, um empregado de escritório ansioso por sair do trabalho para voltar a beber.
João de Melo diz só ter sabido da verdadeira origem das litografias quando se encontrou com Paula Rego em Madrid, onde trabalhava como conselheiro cultural da embaixada. “Quando o livro apareceu em Madrid e fizemos o lançamento, a Paula disse-me: ‘Sabe, o início destes desenhos — não de todos, mas de alguns —, foi uma encomenda que eu recebi de um tal Roquette, que era presidente do Sporting, um homem de vinhos [referência a José Roquette, fundador da Herdade do Esporão]”, recorda João de Melo. “Não me lembro se [a Paula Rego os] entregou pessoalmente ou se ele foi a Londres buscar os desenhos. Sei que, presencialmente, ele reagiu muito mal.”
Mais tarde, em Janeiro de 2008, a série de imagens do livro deu origem a uma exposição Galeria 111, em Lisboa. A propósito da inauguração, o Diário de Notícias publicou um artigo, ‘O Vinho’ de Paula Rego que ficou sem rótulo, sobre o assunto. No texto, lê-se que, de facto, “tudo começou com o convite de uma empresa vinícola portuguesa para a criação de um rótulo”, com “três hipóteses” apresentadas pela artista, “entusiasmada”.
O jornal afirma que a “empresa não gostou e cancelou de imediato a encomenda”, chegando mesmo “a pairar a ameaça de um processo judicial”.
Apesar de achar a história dos rótulos “rocambolesca”, o escritor João de Melo, que voltou a publicar o conto sobre o vinho no livro As Coisas da Alma, reeditado e aumentado em 2018, diz perceber os dois lados da moeda. “Mulheres embriagadas, mulheres a beber vinho, um bebé a beber vinho pelo biberão… Tudo isso era uma ruptura total com a tradição da própria encomenda”, opina o escritor. “Se posso compreender a Paula, também posso compreender o senhor [dono da Esporão]. O que é que a gente pode fazer? A Paula é imprevisível.”
O rótulo de Bin Laden
No livro Colheitas e Artistas 1985-2015, lançado em 2018 pela Herdade do Esporão com rótulos feitos por 32 artistas, o nome de Paula Rego não consta e a história foi quase esquecida.
Rui Falcão, responsável de comunicação da empresa, prefere falar da “história mais conhecida”, que foi notícia em vários jornais: a do “rótulo do Bin Laden”, como lhe chama.
Em 2001, quando o artista Pedro Proença foi convidado para personalizar o rótulo, decidiu desenhar um homem de turbante a ler um livro com uma taça de vinho, supostamente uma homenagem aos mouros que habitaram o Alentejo. A garrafa foi para as lojas do país e para o mercado internacional, que incluía os Estados Unidos — “um dos nossos maiores mercados”, sublinha Rui Falcão.
O problema foi o timing. “O vinho chegou aos Estados Unidos com uma diferença de um ou dois dias [dos atentados] do 11 de Setembro”, recorda o director de comunicação da empresa. “E a imagem do rótulo era precisamente a de um árabe, com um turbante na cabeça. Se pedisse a alguém para fazer uma imagem do Bin Laden, seria aquela.”
O vinho acabou por ser retirado do mercado. “Tivemos de trazer o vinho de volta de todos os mercados do mundo e pôr a nossa distribuidora de Portugal a recolher [as garrafas] de todos os pontos de venda”, recorda. “Pedimos ao Pedro Proença para criar mais uma obra e começámos tudo do princípio.”
Em 2001, o mesmo vinho ganhou dois rótulos e a garrafa tornou-se um “objecto de culto”. “Quem tinha o vinho original, passou a ter uma garrafa que vale o dobro da outra, pela sua raridade”, continua Rui Falcão. Aliás, no site de vendas Custo Justo, ainda hoje se encontra um exemplar da “Esporão Reserva 1999 rótulo Bin Laden”, escreve um vendedor, a um preço de 100 euros. “Valor negociável.”
Na Herdade do Esporão não voltaram a ter problemas com rótulos de artistas, mas quando se mistura vinho e arte há sempre um episódio para contar. Por exemplo, com o rótulo feito pela pintora Ana Jotta, com um gradiente de cores que foi confundido com um erro, conta Falcão. “Recebemos reclamações de dezenas de clientes, garrafeiras e restaurantes, a avisar que a impressão estava mal feita e a pedir a versão correcta.”
A outra história, uma “piada interna”, aconteceu com um rótulo feito pelo artista angolano Binelde Hyrcan, que enviou uma peça de madeira desmontada para ser reproduzida na garrafa. “Quem recebeu e montou [a obra], montou mal”, continua o responsável de comunicação. Quando o artista viu o rótulo e se apercebeu do erro, já o vinho estava à venda. “Mas ele é uma pessoa descontraída e não ficou ofendido. Passou a ser o rótulo imperfeito.”
A história da Carochinha
Rita Rivotti, fundadora da primeira agência dedicada ao design e branding de vinhos em Portugal, é responsável por criar centenas de rótulos, alguns a valerem-lhe prémios em concursos, como a distinção de 2021 nos Pentawards, os prémios mundiais de design de embalagens.
Conseguiu-a com o Vinho do Mar, do Monte da Carochinha, na costa alentejana, um vinho que estagia durante meses no fundo do mar. A garrafa não tem rótulo — apenas uma pequena etiqueta atada ao gargalo — e o que a torna única é o efeito da acção da natureza marinha, a criar formas, cores e relevos sempre diferentes. “Os projectos mais interessantes são os que criamos de A a Z”, realça. “E, em todos os que ganhámos prémios, não houve intervenção do cliente.”
Apesar disso, no mundo dos vinhos a liberdade artística ainda é reduzida. “O mercado português é muito conservador. Cada vez que queremos fazer alguma coisa mais fora da caixa, o cliente não aceita.” Quando não é o cliente, é o próprio mercado que não está preparado, diz a CEO da agência, formada em Engenharia Agrícola.
Foi o que aconteceu com o rótulo de outro dos vinhos do monte alentejano, com uma ilustração colorida de uma Carochinha a beber vinho, com a vinha em pano de fundo. “Não teve aceitação porque o rótulo era muito fora do universo do vinho e as pessoas desidentificam-se com o produto”, explica Rivotti. “Há uma linguagem de vinho, ditada pelos vinhos franceses do século XIX, e essa é considerada a linguagem universal.”
No seu atelier no Jardim das Amoreiras, em Lisboa, mostra-nos garrafas de vários rótulos que idealizou, entre elas a do Monte da Carochinha, que passou a ter um boneco mais discreto e um design mais formal. “O mercado tem vindo a evoluir, mas quando tentamos fazer coisas diferentes dessa linguagem, o consumidor gosta, mas não é o [vinho] que leva para casa — leva o que [lhe] transmite mais confiança, no segmento de preço que destinou.”
Nos vinhos naturais e de menor intervenção, que não têm sido o seu segmento de mercado, Rita Rivotti sente que a abertura criativa é maior. “Já se vêem rótulos bem mais ousados, porque o estilo de vinho permite ir por aí, pede que o rótulo comunique a mesma coisa”, explica.
Uma vulva ou uma uva?
Quando Guilherme Maia, ao lado de Luís Formiga e Diogo Yebra, da marca de vinhos de pouca intervenção APRT3, fundada em 2017, lançaram o vinho Gen3sis, o objectivo era que o rótulo traduzisse o seu processo de vinificação, com grainhas que secaram ao sol para depois serem incorporadas na barrica.
“Gostávamos que o rótulo tivesse o formato de uma grainha e transmitimos essa ideia à artista”, recorda Guilherme. O resultado da ilustração de Cara Trancada, o nome artístico da ilustradora e designer Carolina Gil Lourenço, acabou por surpreendê-los: uma vulva. Ou será uma uva cortada ao meio?
O rótulo deu que falar e o vinho teve a sua última edição em 2021, no ano em “deixou de ser aprovado”, continua o produtor. “O IVV [Instituto do Vinho e da Vinha] decidiu que, por algum motivo, [o rótulo] não estaria adequado àquilo que o mundo dos vinhos ou da bebida teria ligação. Poderia ser muito disruptivo e faltar aos bons costumes.”
Para contornar isso, decidiram pôr toda a informação legal no contra-rótulo e vender a garrafa de vinho com um envelope com um autocolante “com a arte da artista”. “Depois dependia do consumidor, se o colocava ou não.”
O objectivo nunca foi “chocar” ou “ir contra as autoridades”, garante o produtor que só faz o Gen3sis em anos “em que [a colheita] faça sentido”. “A ideia é ter liberdade em termos de criação no vinho e passar isso para o rótulo. A melhor forma de o fazer é chamando artistas para transmitir uma mensagem semelhante. Às vezes aparece algo mais excêntrico, outras vezes não, depende do vinho e da maneira como é feito.”
Fora da lei
Contornar as regras da rotulagem não é uma prática nova. Aliás, o vinho Incógnito, de Cortes de Cima, no Alentejo, ganhou este nome ainda nos anos 90, porque não era possível especificar no rótulo o nome da casta, a Syrah, “proibida na altura”, conta Sara Amado Dias, do marketing da herdade.
Em 1991, Hans e Carrie Jorgensen, um casal dinamarquês-americano, plantaram as primeiras cepas com enxertos vindos do Ródano, “numa área de terreno calcário no cimo de um monte, sem imaginar que a vinha marcaria a região do Alentejo”.
Sete anos mais tarde, em 1998, aparecia a primeira colheita “fora da lei” do vinho, 100% Syrah. “Tiveram alguns problemas na escolha do rótulo”, conta a responsável de marketing. “A casta Syrah ainda não estava autorizada na produção de ‘vinho regional’, daí o nome [que arranjaram], Incógnito.”
Por razões diferentes, Francisco Eduardo também teve problemas com o rótulo do vinho que lançou durante a pandemia, o Que se Foda, de 2020. Na verdade, a sua ideia não era pôr mais uma bebida no mercado, esclarece. “Quando foi lançado, foi como obra de arte. É o que faço, foi o que estudei”, diz o artista plástico, ligado à publicidade.
Na altura, com toda a gente em confinamento, Francisco achou que a garrafa era o “melhor veículo” para chegar a casa das pessoas e que a mensagem do rótulo traria o “momento de descompressão necessário”, afirma.
A ideia foi um sucesso e as mil garrafas da primeira edição do vinho, comprado à Adega de Azueira, desapareceram em dois dias. “Fizemos uma jogada de marketing, com uma última garrafa assinada à mão, que dizemos que vale um milhão [de euros]. Temos uma pessoa que recorrentemente simula que compra a garrafa [no site] e eu sou notificado no meu telefone”, ri-se.
Quando o vinho esgotou, Francisco apercebeu-se de outras imitações do seu rótulo que começavam a surgir. “Apanhei à venda em algumas garrafeiras pequeninas, mercearias”, conta. “Até tenho umas em casa, com uma tipografia diferente, de pessoas que não estão ligadas ao design.”
Não conseguiu registar a marca original e optou pela sigla “QSF”. O nome completo passou a aparecer só nas comunicações da marca e na rolha das garrafas de vinho, a única “aberta na legislação” que encontrou, explica. Ou através de um conjunto de nove garrafas com letras, que no seu todo formam a frase “Que se foda”.
Com a mesma empresa também lançou um picante, o “Picante Fodido”, e com esse não teve qualquer problema na rotulagem. “Não tenho ninguém a reclamar, nem um instrumento de controlo [o IVV], como tenho no vinho”.
Com o sucesso da primeira edição, Francisco decidiu “melhorar” o vinho e juntar-se a um produtor de Tomar, a Santos & Seixo. “Hoje em dia, vendemos vinho, já não vendemos arte, mas a nossa comunicação anda sempre nesta linha ténue”, continua.
No Natal passado, referências da QSF como o Deus Queira, o Dois Patos Encavalitados Um No Outro ou o Todo Nu — este último numa garrafa despida, com um rótulo igual ao do vinho original à parte, num autocolante — esgotaram em pouco tempo.
A verdade é que o desafio da aprovação acaba por ser positivo. “No início, senti-me revoltado por não ser aprovado, hoje vejo isto como uma oportunidade”, confessa Francisco. “Acabo por pensar que se os nossos rótulos fossem aprovados a nossa marca não teria tanta força.”