San Marino leva canções criadas por inteligência artificial a concorrer à Eurovisão

De quatro canções criadas por inteligência artificial, uma concorrerá no festival da canção do país. Se sair vencedora, será a primeira gerada por IA a ser ouvida na Eurovisão.

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Dana Gillespie, veterana cantora britânica com carreira iniciada nos anos 1960, é uma das concorrentes Casperaki
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São interpretadas por cantoras jovens e outras já veteranas, pessoas de carne e osso chamadas Marie Wegener, Meg Birch, Nicola Silva e Dana Gillespie. Estas quatro cantoras levarão Dare to dream, Neon rain, Corazon de mariposa e The last polar bear a concorrer a uma vaga no Una Voce per San Marino 2024, onde será escolhida a canção que o país levará à Eurovisão. Há cantoras e há canções, tudo muito normal. Isto, até sabermos da origem das canções: são, na base, criação de inteligência artificial (IA) e podem fazer história se chegarem à Eurovisão, tornando-se a primeira canção criada por IA a apresentar-se no festival.

Nascidas de uma parceria entre a San Marino RTV, o canal público do país, e a start-up londrina Casperaki, aplicação de criação musical em IA, as canções foram seleccionadas depois da abertura de um concurso, que decorreu entre dia 27 de Novembro e 15 de Janeiro. As participações estavam abertas a qualquer pessoa, músico ou não, que criasse um tema através da aplicação. Podiam participar igualmente cantores e cantoras, que deveriam submeter um vídeo em que surgissem a interpretar uma canção à sua escolha. De entre todas as canções submetidas a concurso, a RTV e a Casperaki escolheram uma primeira selecção de dez, trabalhadas posteriormente pela equipa de produtores da start-up, já com cantores reais. Destas foram agora seleccionadas as quatro finalistas que concorrerão a uma vaga no Una Voce per San Marino 2024.

“Crie em minutos canções orelhudas e preparadas para serem um sucesso. Quer seja um principiante ou um profissional experiente, a nossa aplicação de utilização fácil permite-lhe, num ápice, compor e produzir faixas com som profissional”. Assim se apresenta a Casperaki no seu site (a aplicação disponibiliza quatro perfis de produtores e oito géneros de música) e, de facto, as canções criadas para Una Voce per San Marino 2024 parecem cumprir à risca a fórmula descrita no enunciado. Há uma balada rock cantada por uma veterana inglesa cuja carreira remonta aos anos 1960, The last polar bear (Dana Gillespie), um tema europop de batida bamboleante, Corazon de mariposa (Nicola Silva), o house vitaminado de Neon rain (Meg Birch) e uma segunda balada, esta de contornos épicos e contorcionismos vocais, Dare to dream (Marie Wegener).

Todas elas foram criadas, de base, por IA, mas ganharam as formas com que as ouvimos agora através da intervenção de produtores e técnicos humanos. Nenhuma delas destoa daquilo que se ouve, ano após ano, país a país, entre as canções concorrentes à Eurovisão.

Transparência e controlo

As canções de San Marino surgem pouco depois da publicação, no final de Janeiro, do primeiro estudo sobre o impacto da IA no meio musical. O relatório, elaborado pelas sociedades de autores, compositores e editores francesa e alemã, a SACEM e a GEMA, respectivamente, e agora revelado pelo diário francês Le Figaro, dá conta de um cenário em que uma utilização crescente da IA por parte de músicos e produtores coexiste com os receios de que esta possa ser um entrave à sobrevivência financeira dos artistas. Se cerca de um terço dos inquiridos já recorrem à IA em várias dimensões da sua actividade, 71% “receiam que a IA generativa deixe de permitir aos criadores de música viver do seu trabalho no futuro", nota ao Le Figaro Klaus Goldhammer, director-geral da empresa responsável pelo estudo, a Goldmedia.

Segundo o relatório, os rendimentos de autores e criadores poderão cair 27% até 2028, o que equivale a uma perda de 2,7 mil milhões de euros. O foco das duas sociedades de autores não está, porém, em limitar ou impedir a utilização da IA na música, antes em torná-la “virtuosa”, afirma a directora-geral da SACEM, Cécile Rap-Veber, e em proteger os artistas da sua utilização indevida. Tobias Holzmüller, da GEMA, afirma ser indispensável que as empresas de IA garantam aos artistas “transparência e controlo na utilização das suas obras”.

Certo é que a emergência da IA, que se alastra às mais diversas áreas de actividade e, necessariamente, também às expressões criativas, da música ao cinema e à fotografia, está a consolidá-la como ferramenta cada vez mais presente no mundo contemporâneo. Quanto a isso, é consensual que não haverá retrocesso. Tanto que, voltemos ao início, San Marino pode tornar-se brevemente o primeiro país a concorrer à Eurovisão com uma canção gerada por IA, mas desde 2020 que há um festival da Eurovisão da Inteligência Artificial, o AI Song Contest, em que todas as canções são criadas recorrendo a essa ferramenta.

A primeira vencedora, no festival realizado em 2020 nos Países Baixos, com existência remetida ao online (estávamos em pandemia e a própria Eurovisão fora cancelada), foi Beautiful the world, criada pela equipa australiana Uncanny Valley com recurso a sons de coalas ou do diabo da Tasmânia. Na edição mais recente, que teve lugar na Corunha, em Novembro de 2023, os vencedores foram os neerlandeses Synthetic Beat Brigade, com How would you touch me, criado após análise de todas as canções concorrentes à Eurovisão entre 2010 e 2019. De acordo com a descrição da equipa no site da AI Song Contest, é uma canção sobre “o amor inatingível entre um ser humano e um IA”.

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