A esquerda riquinha de “Mariana” e “Pedro Nuno”

Mais do que um candidato apostado em obter uma maioria que requer a erosão da base eleitoral do Bloco, Pedro Nuno Santos fez o papel do líder refastelado e empenhado em conservar os fiéis do PS.

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Ele chamava-lhe Mariana, ela respondia ao Pedro Nuno. Teria o PS e o Bloco celebrado um pacto de não-agressão para tornar o debate desta sexta-feira, na RTP, no mais inócuo, soporífero e táctico de todos os que os eleitores puderam ver até agora? Onde estavam as diferenças programáticas e de estilo que, na Assembleia, tantas vezes levaram o primeiro-ministro António Costa à irritação com o Bloco? Onde esteve a defesa da esquerda moderada face a um programa claramente estatizante e suspeitoso da economia de mercado? Pedro Nuno e Mariana foram dizendo o que cada um dos seus partidos propõe e defende, mas sempre com tanto prurido e tanta cautela que o debate de ontem valeu muito pelo enlevo e valeu nada pela frontalidade e clareza de posições.

Logo no princípio, Mariana Mortágua deixou no ar um leve indício do que é e tem sido nesta série de debates: uma máquina argumentativa, um acervo interminável de informação pronta a debitar, uma líder com pose de convicção assertiva e directa que ora entala, ora desarma os seus interlocutores. Quando afirmou que o Bloco “tinha uma responsabilidade”, a de “virar a página das políticas da maioria absoluta” que, em concreto, provocaram um “desastre na saúde”, ainda foi possível acreditar que essa máquina estaria pronta a firmar propostas, a delimitar fronteiras e a expor ao país o que o país sabe desde sempre: que a distância dos programas entre o PS e o Bloco é tão grande que só o artifício de uma construção apressada e desengonçada como a geringonça era capaz de aproximar.

Pedro Nuno Santos foi o grande culpado por essa artificialidade que dessalinizou o debate. Foi dizendo que “não fazia sentido” um acordo escrito e a cada passo tratou de contrariar “Mariana” em matérias como as privatizações ou a habitação. Mas o seu propósito de fumar o cachimbo da paz que intoxicou o estúdio e arrasou os esforços de João Adelino Faria lá se ia mostrando com sucessivos “concordo”, com elogios ao diagnóstico dos problemas do Bloco, com apoio às críticas do Bloco às privatizações e por aí fora. Mais do que um candidato apostado em obter uma maioria que requer a erosão da base eleitoral do Bloco, Pedro Nuno Santos fez o papel do líder refastelado e empenhado em conservar os fiéis do Partido Socialista.

Criou-se então aquele clima de détente digno da Guerra Fria, com cada um dos contendores a sugerir que tinham garras verificáveis nas diferenças dos seus programas, mas dispostos de imediato a recolhê-las para evitar o risco da Destruição Mútua Garantida. Os eleitores do Bloco que viram Mariana Mortágua contida, disposta a “virar a página” sem impor a mudança do livro, podem ter ficado contentes em nome dos amanhãs que cantam, quer dizer, da probabilidade de o Bloco e o PS caírem de novo no abraço que depressa esquecerá a privatização da REN ou a proibição de compra de casas a não residentes. Os eleitores do PS lá seguirão conformados com os instintos medrosos que norteiam sempre o calculismo.

Uma coisa é certa: o PS não ganhou um voto aos indecisos, não interpelou e mobilizou os eleitores da esquerda em nome do combate à direita, nem foi capaz de deixar uma dúvida mesmo que remota aos que estão no centro político a ver por onde sopra o vento dominante. Depois, para quem gosta do debate político do bom, os que esperavam um Pedro Nuno Santos a defender com galhardia as suas novas roupagens centristas e previram mais um capítulo do brilhantismo de Mariana Mortágua (até no uso da perfídia na argumentação ou na capacidade de tergiversar nas matérias inconvenientes), os minutos do debate deixaram a sensação de tempo perdido. Podem ter valido pela leitura táctica dos dois partidos na relação um com outro. Não valeram nada pela novidade ou o esclarecimento. Os dois podiam ter encomendado um violino para pano de fundo, o que sempre tornaria o “debate” num momento bem mais interessante.

Mas, com esforço, alma aberta e espírito positivo, não houve mais nada para lá do “virar da página”, das diferenças sobre privatizações, da insistência de Mariana Mortágua nos “salários e carreiras” do SNS às quais Pedro Nuno Santos acrescentou a necessidade de “melhorias organizativas”? Não houve mesmo mais nada? Bom, houve a crítica mansa do líder do PS ao Bloco sobre a ideia de que um Governo europeu podia forçar uma instituição financeira regulada pelo Banco Central Europeu, a Caixa, a baixar as suas taxas de juro. Ou a constatação de que Mariana Mortágua não sabe ou não quer responder à pergunta sobre se Portugal deve aumentar a despesa militar para 2% do PIB, no âmbito dos compromissos assumidos com a NATO. Mesmo?

Foi poucochinho. A diversidade de programas e de estilos entre os dois programas e os dois líderes deviam ter salvo os telespectadores de uns tristes minutos amarrados ao medo de debater. “Mariana” e “Pedro Nuno” hão-de acreditar que o confronto de ideias só faz sentido quando o alvo é a direita. Tudo bem, mas nem esse grande choque entre as duas grandes placas tectónicas da democracia impedem que a esquerda se discuta e projecte na sua diversidade.

A deliberação, consciente ou fortuita, pouco importa, de esconder essa diversidade pode acolher muitos nomes. Aqui ficam dois: medo e hipocrisia.

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