Fotogaleria
Estes são os “monstros” ancestrais que acordam por todo o lado no Carnaval
Ao longo de 13 anos, o fotógrafo Jason Gardner fotografou as mascaradas de Inverno de 15 países, incluindo Portugal. O livro We The Spirits reúne retratos de "monstros" que datam de tempos ancestrais.
Entroido, pust, mas, fasnacht, courir ou Mardi Gras são nomes que aludem, cada uma numa língua diferente, para as mascaradas de Inverno que se repetem, anualmente, entre Janeiro e Março, um pouco por todo o mundo. Estas tradições, que se disseminaram a partir da Europa até outras paragens, datam de uma era pré-Cristianismo e ligam as gentes do presente ao seu passado ancestral. Entre 2011 e 2023, o norte-americano Jason Gardner viajou até 15 países do mundo e reuniu no fotolivro We The Spirits, publicado em Dezembro de 2023 pela Gost Books, os retratos das criaturas que ganham vida em cada celebração.
O interesse de Gardner pelas tradições carnavalescas não surgiu em 2011, mas sim muito antes, quando, no Brasil, mais especificamente em Pernambuco, fotografou o projecto que daria origem ao seu anterior fotolivro Uma Flor na Boca, editado em 2013, que é inteiramente dedicado ao retrato do Carnaval da região. “Nos anos em que não podia estar no Brasil a celebrar e a fotografar o Carnaval, comecei a procurar outros carnavais que ficavam mais perto de Nova Iorque, onde eu vivia na altura”, recorda, numa videoconferência com o P3 a partir de Paris. Viajou até Nova Orleães e Louisiana, onde fotografou os seus famosos Mardi Gras. Seguiram-se as ilhas de Trinidad e Tobago, nas Caraíbas. “Quando me mudei para a Europa, em 2016, continuei a explorar os carnavais ao meu redor.” Alemanha, Áustria, Bulgária, França, Grécia, Itália, Macedónia do Norte, Polónia, Portugal, Eslovénia, Espanha, Suíça foram os países que visitou.
“Todos os rituais que observei são diferentes. Mas, de um certo modo, são todos iguais.” Existem, entre todos, traços comuns. “Por um lado, os temas das festas são parecidos. A passagem do Inverno para a Primavera e a relação das pessoas com a natureza são constantes. A exploração de arquétipos antagónicos, de bem e mal, de belo e feio, de claro e escuro, são também muito frequentes, assim como inclusão de elementos naturais nos trajes.” Folhagem, cascas de árvores, musgo, assim como peles de animais ou chifres ajudam a compor os monstros carnavalescos das muitas geografias que visitou. “Por outro lado, existe o aspecto da eliminação das normas sociais e da quebra de barreiras socioeconómicas. Toda a gente se junta em posição de igualdade.”
Casamentos de faz-de-conta são também transversais a muitas das festas carnavalescas. “Numa aldeia da Eslovénia é comum marcarem-se casamentos por esta altura do ano, por estar associada ao renascimento, à renovação. Quando não há nenhum casamento planeado na aldeia, dois rapazes vestem-se de noiva e noivo e andam de casa em casa, de braço dado, a bater às portas e divertirem toda a gente.” Este tipo de tradições, reflecte o norte-americano, substituíam-se às aplicações de encontros que existem actualmente: “Quando se vai de casa em casa, vê-se toda a gente que lá está, o que se cozinha, etc. As pessoas conheciam-se melhor nestas festas e assim nasciam novos casais”.
Em Cirkovce, no mesmo país, a ausência de casamentos nesse período pode mesmo “chegar a extremos”. “As mulheres solteiras da aldeia participam numa cerimónia em que casam com árvores e, de seguida, transportam troncos de casa em casa.” Na Macedónia do Norte e na Bulgária, as festas de Inverno também incluem as figuras de noivo e noiva, em diferentes moldes. Na remota aldeia macedónia de Begnishte, um grupo de mascarados (entre eles os noivos) anda de porta em porta a “espantar o mal” das casas e a desejar boa saúde, felicidade e fertilidade.
Nas aldeias búlgaras de Leskovets, Drazhevo, Kozarevo e Yambol, decorre uma cerimónia de casamento de faz-de-conta, que inclui a presença de um urso dançante, em cada casa. O urso é uma figura central desta celebração. “Aqueles que sofrem de alguma maldição ou doença podem queimar um pedaço do fato de urso para se purificarem. No interior das casas, o urso provoca uma zaragata amigável com o dono da casa. E quando o urso consegue ficar por cima dele, acredita-se que boa sorte para o próximo ano irá agraciar aquela casa.” Gardner diz, segundo a lenda, que quando o urso abraça uma mulher, ela ficará grávida no ano seguinte.
Também em França, nos Pirenéus orientais, os ursos assumem grande protagonismo, “perseguindo” pessoas e “espalhando” a boa sorte. “Contaram-me, numa entrevista nessa festa, que quando as pessoas põem as máscaras de urso entram numa espécie de transe e não se lembram, até tirarem a máscara, do que fizeram. Achei isso muito curioso. Não era o efeito de álcool ou drogas, mas apenas o acto de se mascararem que as colocava nesse estado.”
Embora se tenha esforçado por estar presente, sobretudo, nas festas em que o acesso a pessoas de fora da comunidade é rara, Gardner garante que assume sempre um papel de invisibilidade, para não perturbar os rituais. “Normalmente fotografo os retratos antes ou depois das festas – ou então durante uma pausa.” Este é um detalhe importante para Jason Gardner, que tem assistido, ao longo da última década, a um interesse generalizado, massificado, por este tipo de festas.
“Vejo isto a acontecer de forma recorrente. Há pessoas que crescem nessas aldeias, que amam as suas tradições, e que regressam das cidades grandes para onde se mudaram para revalorizar estes rituais. Percebem como os grandes festivais se transformam em sucessos comerciais e tentam replicar esses modelos.” O fotógrafo não dissocia esses fenómenos das redes sociais, onde as pessoas gostam de publicar coisas bonitas e pouco conhecidas. “Se por um lado estas são festas bonitas que merecem ser mostradas, por outro há fotógrafos ou pessoas que as fotografam que nem sempre se comportam de forma não intrusiva.”
Gardner tende a evitar os grandes Carnavais. Os do Rio de Janeiro, de Veneza, ou mesmo os de Podence (classificado como património imaterial da UNESCO em 2019) são “organizados por muita gente, têm muitos visitantes”. Já foram fotografados de todos os ângulos possíveis e por esses motivos não o atraem. “Prefiro ir a outros lugares.” Nem por isso Portugal fica fora da sua mira, refere. À data da publicação deste artigo, o fotógrafo encontra-se em Portugal a recolher imagens de uma outra festa carnavalesca.
We The Spirits contém, nas últimas páginas, uma referência a uma inscrição que está patente na Capela dos Ossos, em Évora. “Nós ossos que aqui estamos pelos vossos esperamos.” “É uma frase muito simbólica”, comenta. “Foi a partir dela que cheguei ao título ‘Nós espíritos’. Dá a ideia de que tu virás a seguir para o mesmo lugar onde todos estamos, anui um reconhecimento desta ‘dança’ humana com a morte. Este aspecto cíclico confere mais profundidade a estes rituais. Encontra uma razão para existirem.”
Porque o fazemos, afinal? “Cumprimos estes rituais porque nos está no sangue”, responde Gardner. “Sempre os cumprimos porque gostamos, mas também porque temos de cumprir. Fazem parte da nossa identidade, da nossa herança. Os rituais honram a nossa relação com a terra, os animais e a natureza, honram a relação com os nossos antepassados, com os ciclos de vida.”