Onde pode chegar a “guerra de forças” entre polícias e Governo?

De um lado, um Governo em gestão que atira decisões para a próxima legislatura. Do outro, os protestos das forças de segurança que podem estar a “sair do controlo”. O que esperar nos próximos tempos?

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Protestos dos membros da PSP e da GNR vão continuar, garantem sindicatos Nuno Ferreira Santos
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Nem as reuniões com a liderança das forças de segurança, nem os inquéritos abertos pelo Governo, nem o rotundo "não" do Ministério da Administração Interna que remete uma solução só para depois das eleições vão travar os protestos dos elementos da Polícia Segurança Pública (PSP) e da Guarda Nacional Republicana (GNR) por aumentos salariais e o pagamento de um subsídio de risco nos mesmos termos que a Polícia Judiciária (PJ). No horizonte surgiram, nos últimos dias, receios sobre as consequências dos protestos nas eleições do próximo mês. Que leis estão em causa? E o que está em cima da mesa para cada lado da barricada?

Até onde podem ir os protestos dos polícias e guardas?

Há duas linhas vermelhas essenciais que os agentes da PSP e os guardas da GNR não podem ultrapassar. Uma delas é a greve, aponta Luís Gonçalves da Silva, advogado especialista em Direito do Trabalho. Apesar de o direito à greve ser precisamente uma das exigências que as forças de segurança querem ver satisfeitas pelo Governo, o artigo n.º 3 da Lei n.º 14/2002, de 19 de Fevereiro diz que uma das "restrições ao exercício da liberdade sindical" nestes casos é "exercer o direito à greve".

"São trabalhadores que têm capacidades reivindicativas reduzidas", sumariza a advogada Rita Garcia Pereira, também ela perita em Direito do Trabalho, para quem "a única coisa que podem fazer como reacção é serem absolutamente rigorosos quando não estiverem reunidas as condições para o exercício das suas funções sem comprometer a sua integridade física".

Isto passaria pela recusa em utilizar veículos das forças de segurança que não tenham a inspecção em dia ou que apresentem pneus carecas, por exemplo, ou negar-se a usar coletes cujo prazo de validade já foi ultrapassado. A linha é ténue para uma forma específica de greve — a de zelo, quando as regras são seguidas com tamanha minúcia que a produtividade fica comprometida. Ainda assim, explica a advogada, a "não utilização de aparelhos que comprometam a integridade física deles próprios" seria uma forma legítima de luta.

Outra linha vermelha, entende a advogada, é uma interferência das eleições legislativas: "Poderia constituir um atentado contra o estado democrático".

Mas, ainda antes de lá chegar, há regras que as polícias não podem quebrar, até no exercício dos direitos de manifestação consagradas na lei: "A restrição do uso de uniforme é aplicável a manifestações públicas de carácter sindical", recorda Luís Gonçalves: "Num primeiro momento vimos todos os agentes à civil, mas momentos houve em que alguns estavam de uniforme. Isso é uma infracção".

O que pode o Governo fazer para travar as manifestações?

Se a negociação não estiver em cima da mesa — como o ministro da Administração Interna diz não estar, argumentando que o Governo está em gestão — o Executivo pode entrar "numa guerra de forças", acrescenta Rita Garcia Pereira. Enquanto as forças de segurança podem assumir essa postura mais rigorosa sobre os seus direitos e deveres, o Governo pode apostar num "controlo mais fino das situações de doença e ter mais polícias de prevenção para acautelar" as faltas.

"Escalar mais pessoas é um direito que compete" à liderança da PSP e da GNR, adianta a advogada, e isso pode ser concretizado "fazendo rotações de pessoas que normalmente têm funções de secretaria, pondo-as noutras posições". Outro caminho é aquele que já está a ser aplicado: aumentar a fiscalização das baixas médicas que têm surgido no seio das forças de segurança e que têm resultado na falta de policiamento.

A requisição civil é uma hipótese?

A possibilidade de uma requisição civil está prevista no Decreto-Lei n.º 637/74, de 20 de Novembro, relativo à "necessidade de assegurar o regular funcionamento de certas actividades fundamentais, cuja paralisação momentânea ou contínua acarretaria perturbações graves da vida social, económica e até política em parte do território num sector da vida nacional ou numa fracção da população".

"A ideia da requisição civil é agir, por exemplo, perante uma greve", adianta Rita Garcia Pereira. As forças de segurança fazem parte de um apertado grupos de profissionais em que essa forma de manifestação não é permitida por lei. "Podemos questionar e debater a constitucionalidade disso, mas essa é a regra", explicou. Por isso, se houver uma greve ilegal pelas forças de segurança, a requisição civil é um instrumento possível para garantir a segurança no país.

Na lista dos "serviços públicos ou empresas que podem ser objecto de requisição civil" não existe nenhuma referência directa às forças de segurança. Mas isso não impede a utilização deste instrumento mesmo que não exista qualquer greve ilegal da PSP e da GNR, entende o advogado Luís Gonçalves da Silva, especialista em Direito do Trabalho: afinal, a falta de forças para garantir a segurança no país constitui um "caso excepcionalmente grave", tal como consta na lei.

Que protestos estão a acontecer?

duas dimensões de protestos, esclarece ao PÚBLICO o presidente da Associação Sindical dos Profissionais da Policia (ASPP/PSP), Paulo Santos: os que foram organizados no âmbito da plataforma que une 11 sindicatos da PSP e da GNR — onde se incluem as manifestações com milhares de participantes em Lisboa e no Porto, as vigílias e concentrações que se têm registado no último mês — e os "movimentos inorgânicos", à margem dos sindicatos

Essas acções de protesto espontâneas, de que os sindicatos se demarcam, incluem "outras iniciativas" que tendem a acontecer a um nível mais local, como concentrações junto aos comandos ou vigílias à porta das câmaras municipais. Depois, "há uma situação que não podemos ignorar", admitiu Paulo Santos: o número crescente de baixas médicas que agentes da PSP e guardas da GNR têm apresentado nos últimos dias, esvaziando as esquadras ​e impedindo a realização de eventos como o jogo de futebol entre o Sporting e o Famalicão no sábado passado.

As baixas nas polícias são acções de protesto?

À luz da lei, não podem ser: caso se venha a comprovar que algum agente ou guarda apresentou baixas fraudulentas, tanto ele como o médico que as passou enfrentam consequências legais — e, no caso das forças de segurança, o caso pode desencadear uma infracção disciplinar. "É uma grave violação dos seus deveres", sublinha Luís Gonçalves da Silva.

"Seria uma estranha coincidência, mas em tese é possível que todos agentes em causa tenham estado ou ainda estejam doentes", concorda Rita Pereira Garcia. Se a validade das baixas não se confirmar, "é uma infracção disciplinar muito grave que dá direito a demissão".

Para Paulo Santos, estas baixas médicas não constituem acções de protesto: "As nossas reivindicações é que vieram demonstrar o que durante muito tempo não se demonstrou. Temos trabalhado cansado e fustigados, por isso agora os polícias estão a ir ao médico porque estão cansados", disse ao PÚBLICO. "Os guardas e os polícias são humanos e ficam doentes como qualquer pessoa", reforça César Nogueira, presidente da Associação dos Profissionais da Guarda Nacional Republicana (APG/GNR).

Enquanto um cidadão comum pode pedir uma autodeclaração de doença válida durante três dias através do SNS24, as baixas dos trabalhadores da PSP e da GNR têm mesmo de ser confirmadas por um médico. No caso de uma doença súbita que impeça a comparecência ao trabalho, os documentos têm de ser apresentados num prazo de cinco dias úteis.

Os protestos podem afectar as eleições?

O presidente do Sindicato Nacional da Polícia (SINAPOL) avisou na SIC Notícias no sábado passado que existe uma "possibilidade" de as eleições legislativas de 10 de Março estarem em risco, uma vez que são as forças de segurança quem transporta os boletins de voto e as urnas.

No dia seguinte, o presidente do sindicato voltou à SIC Notícias para clarificar as declarações do dia anterior, interpretadas como uma ameaça ao boicote às eleições: "Aquilo que eu disse ontem foi uma coisa completamente contrária daquilo que quiseram meter na minha boca — que ameacei, que apoiei, que anunciei um boicote às eleições de dia 10 de Março. Nada disso aconteceu".

"Eu disse, com base num plano de hipóteses, com base naquilo que são os sinais que me vão chegando, e que são preocupantes que, de facto, no dia 10 de Março, considerando que são os polícias quem transporta as urnas e faz o transporte dos boletins de voto, isso poderia acontecer nesse dia. Depois do que fizeram em Famalicão, tudo o que possa acontecer é imprevisível", sublinhou.

Contactado pelo PÚBLICO, Armando Ferreira reiterou que não é "responsável por palavras" que lhe tenham posto "na boca", porque não ameaçou com um boicote às eleições — até porque, apesar de temer que os protestos à margem das estruturas sindicais atinjam as eleições, "não concordaria" com elas: "Espero que não aconteça porque seria muito mau". O presidente do SINAPOL remeteu mais declarações para uma conferência de imprensa no dia 8, quinta-feira, às 14h30 com os advogados do sindicato.

E como reagiu o Governo?

Sobre as preocupações em torno das eleições, José Luís Carneiro, ministro da Administração Interna, abriu um inquérito de carácter urgente às declarações de Armando Ferreira e convocou o director nacional da PSP e o comandante-geral da GNR para uma reunião neste domingo. O governante entende que "tudo o que ponha em causa os deveres disciplinares e que atente contra o Estado de direito e a legalidade democrática deve ser rigorosa e amplamente sancionado".

Quanto às reivindicações dos polícias e guardas, José Luís Carneiro afirmou que "o Governo em gestão não tem legitimidade política para assumir encargos duradouros" — e que só o fez perante os protestos dos agricultores porque "são medidas de carácter excepcional", que "não têm carácter duradouro". É uma situação diferente da suscitada pelos polícias e guardas, argumenta o Governo, porque em causa estará "um encargo permanente".

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