A transfobia desfilou no Carnaval de Ovar — e todos deviam levar a mal

Com a chegada do Rei a Ovar, não dá para não parar e reflectir sobre a transfobia sugerida numa das apresentações.

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Megafone P3: A transfobia desfilou no Carnaval de Ovar — e todos deviam levar a mal Anna Costa/ Arquivo
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Após encher os jornais, em 2023, como a primeira mulher trans a vencer o concurso Miss Portugal, Marina Machete voltou a ser assunto, desta vez nas ruas da Chegada do Rei ao Carnaval de Ovar. Se uns grupos de Carnaval tomaram as ruas para fazer humor e criticar o estado da política local, outros decidem esbanjar a sua transfobia legitimada pelo espaço que ocupam.

Imaginem a cena. Vários grupos já dançaram, cantaram e criticaram a situação local e nacional, já típico da folia ovarense da época. Entra a Miss Xaxa pelas ruas, ostentando a sua faixa de nome condizente. Acompanhada por um grupo de “matrafonas”, vestidas de forma extravagante e desajeitada, exibindo uma mistura marcante de feminilidade e elementos masculinos que denunciam a “farsa”, lemos “poesia” em cartazes que, se não fosse pela ignorância do conteúdo, poderia suscitar uma discussão sobre a sua inteligência rimática: “São tempos de modernice, não deixa de ser estranho. Na hora da necessidade, qual será a casa de banho?”, “Já não basta ser bonita e ter bom andamento, qualquer dia a selecção vai ser pelo comprimento”, “Concurso de renome a nível mundial, a única mulher com tomates foi a Miss Portugal” e “Estas misses que aqui vão tem tudo natural, não injectaram botox p'ra desfilar no Carnaval”.

Não dá para não parar e reflectir sobre a transfobia sugerida nesta apresentação. Esta exibição não mostra uma peça de humor isolada do resto dos nossos dias, mas serve como uma demonstração da transfobia e as narrativas que as alimentam. Ser uma mulher trans, afinal, não é ser um homem mascarado a ocupar os espaços femininos, mas boa parte da sociedade assim o crê.

Ser uma mulher trans não é sobre casas de banho ou genitais, mas mesmo assim o discurso vive por aí. A vivência trans não é existir num género falsificado, pois todo o género é uma produção falsa, no sentido que é criado e afirmado por vontade humana. As pessoas trans tentam simplesmente navegar um mundo coberto pelo género da forma que se sentem mais confortáveis.

Se a Marina “finge ser mulher”, da mesma forma que uma “matrafona” finge, estará a fingir tanto quanto o resto de todas as outras mulheres, essas legitimadas por uma ideologia que se ilude como mais objectiva ao falar de biologia, desinformada e mal informada ao não saber que ser mulher, assim como ser homem, vem da sociedade, e não dos nossos corpos.

Não peço “cancelamentos” ao grupo de Carnaval que teve esta infeliz ideia, mas que se reflicta, toda a sociedade, que o que podemos tomar como uma simples brincadeira é representante de ideias muito maiores do que uma apresentação. As pessoas trans continuam a lutar por direitos básicos como a autodeterminação plena da identidade de género nas escolas (ainda vetada esta segunda-feira pelo Presidente da República). A transfobia é uma realidade diária, não vive no vácuo e não tira tempo para festas, logo, a luta contra ela também não deve tirar. A transfobia deve ser levada a mal, até no Carnaval. O “território de emoções” deve ser de alegria, não tristeza, solidão e medo. O direito das pessoas trans de autonomia sobre os seus nomes, corpos e identidades não deve ser ridicularizado.

Se o Carnaval é, como tem sido, um momento de subversão da ordem social e libertação das contenções sociais vivenciadas na vida comum, então este ato libertou dos piores que a sociedade tem: a transfobia, a discriminação e o preconceito. Faça-se diferente. Bom Carnaval.

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