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Merlini entra na twilight zone entre a vigília e o sono
O fotolivro Better in the Dark than His Rider, do italiano Francesco Merlini, convida a abrir os olhos e a entrar no sonho.
O sonho, pessoal e intransmissível, é uma espécie de mistério humano universal. A ciência já o consegue explicar, em parte, mas, diante das suas respostas perdura uma certa insatisfação de natureza existencial, metafísica. Porque sonhamos o que sonhamos? O que significam as situações que vivemos nos sonhos? Dir-nos-ão algo sobre nós que ainda desconhecemos? Como descodificar? A dúvida, também ela íntima, e por isso igualmente pessoal e intransmissível, permanece intacta e provoca inquietação. É inextinguível.
Francesco Merlini sonha. "Às vezes lembro-me dos meus sonhos, outras vezes apenas experiencio as emoções que surgiram dentro do sonho sem me lembrar dele", cogita. Sonhar faz parte do funcionamento do cérebro humano e é possível que mesmo quem nunca se lembre de ter sonhado já o tenha feito. "Os sonhos são pontes entre memórias e futuros possíveis, potenciais", continua Francesco, discorrendo sobre o tema que está na base do seu fotolivro Better in the Dark than His Rider, editado em Outubro de 2023 pela Départ pour l'Image.
Em conjunto com Luca Reffo, professor de Pintura na Academia de Belas Artes de Veneza, e Francesca Todde, fotógrafa, designer e editora com base em Milão, o fotógrafo quis criar um livro que fosse capaz de recriar "a dinâmica irracional dos sonhos". O livro de 78 páginas, que encerra imagens sequenciadas numa narrativa não-linear, ora inquietante, ora plácida, convida à deambulação, à imersão.
Entre a vigília e o sono, existe um estágio, denominado de hipnagógico, em que a consciência começa a dissolver-se e a formular as primeiras imagens dos sonhos. A experiência, tipicamente curta, assemelha-se à entrada numa espécie de twilight zone. Normalmente acompanhada de espasmos e outras manifestações físicas, a hipnagogia é um período em que imagens ou sons vívidos, e não raramente bizarros, são produzidas pelo cérebro. Better in the Dark Than His Rider explora este conceito e as imagens que o compõem "revelam a perspectiva de alguém, como um sonâmbulo guiado por fantasmas, que procura algo impossível de traduzir por palavras", escreve Merlini, membro da agência fotográfica Prospekt, em entrevista ao P3.
Permeado de ilustrações novecentistas (recolhidas de livros tais como Les Rêves et les moyens de les diriger, de Léon d’Hervey de Saint-Denys, publicado em 1867, ou enciclopédias médicas que datam de entre 1755 e meados de 1800), com um código cromático intrincado — concebido por Luca Reffo numa relação dialéctica com as fotografias de Merlini — o livro entrega ao leitor um conjunto de documentos que fazem prolongar o olhar.
"As páginas do livro não são brancas", dá como exemplo o fotógrafo. "Uma paleta de cores, que varia entre o azul, o vermelho, o roxo e o cinzento, envolvem cada imagem." Reffo passou cinco meses a trabalhar as cores e as imagens de forma a fazê-las comunicar entre si. "E essa relação tornou-se tão estreita que não creio que cor e fotografia pudessem viver separadas. Era exactamente o que desejávamos."
O livro começa com "associações figurativas às formas físicas dos nossos órgãos de visão", refere. "Até que chegamos à narrativa principal, centrada no sonho vívido." Numa espécie de crescendo, "as últimas páginas remetem para um sonho pleno, onde todo o controlo é perdido", continua. Então, "um caos aparente de imagens heterogéneas provoca a sensação de todas as fotografias se tocarem, dando vida a novas narrativas que alternam entre a realidade e a ficção".
As cerca de 40 fotografias patentes não foram produzidas especificamente para integrarem o livro — que foi distinguido como o Livro do Mês de Setembro de 2023 pela Fundação Henri Cartier-Bresson e cuja segunda edição foi lançada em Novembro último, durante a feira internacional de fotografia Paris Photo. Faziam parte do arquivo de Merlini, eram "fotografias órfãs", que não cabiam noutro corpo de trabalho.
Ao longo de vários meses, Merlini, Reffo e Todde analisaram centenas de imagens e encontraram uma história "que era muito clara". "Trabalhando com imagens que já existiam, fomos capazes de recriar a imprecisão e a indefinição típica do mundo dos sonhos, que é tão intrigante", explica. "Trabalhámos sem quaisquer restrições e tivemos, assim, a possibilidade de explorar ao limite o formato fotolivro e as suas potencialidades imersivas." A natureza quase minimalista de muitas das imagens, uma característica transversal da obra de Francesco Merlini, torna a leitura mais subjectiva e, neste contexto, mais rica.
O título do livro é uma citação de um livro sobre óptica do século XIX. Much Better in the Dark than His Rider remete para o facto de os cavalos terem melhor visão nocturna do que os seres humanos. "Na escuridão, o cavaleiro tem de confiar no cavalo, que vê muito melhor do que ele", explica. "Esta frase tocou-nos porque se refere ao estado de abandono necessário para aceder ao mundo dos sonhos, ao acto de largar as cordas que nos mantêm ligados à realidade."