Aqui na América
Luigi Mangione e uma conversa necessária sobre a saúde nos EUA
Notas made in USA sobre a vida americana. Pedro Guerreiro escreve a partir dos Estados Unidos.
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Primeiro, tentamos marcar uma consulta com o médico de família. Com azar, é coisa para demorar umas semanas ou meses. Lá conseguimos, mas é só para dizer-lhe que precisamos que nos encaminhe para um médico especialista. Outras semanas ou meses de espera. Lá chegamos ao especialista, que pede exames e nos receita uns medicamentos.
Até aqui, não há grandes diferenças entre Portugal e os Estados Unidos. Sim, nos EUA também se espera. A liberdade de escolha é ilusória fora dos grandes centros urbanos, sobretudo nos chamados "desertos médicos" das zonas rurais, extensíssimas áreas sem cuidados especializados, o que obriga a deslocações de centenas de quilómetros para consultas e tratamentos. Mas mesmo nas grandes cidades e nos seus arredores pode ser difícil encontrar em tempo útil um clínico ou um terapeuta compatível com um dado seguro de saúde. O mais certo é não se poder escolher; é o que houver.
Os EUA não têm um sistema de saúde pública, à excepção daquele que criou para os seus veteranos militares. Há depois dois grandes sistemas públicos de seguros de saúde, mais ou menos semelhante ao que os portugueses reconhecem na ADSE: o Medicare, reservado a maiores de 65 anos e a pessoas com alguns tipos de incapacidades, e o Medicaid, destinado a pessoas com poucos recursos financeiros.
Para os restantes norte-americanos e para quem por cá andar, o que há são seguros privados de saúde, sobretudo associados ao emprego. Custam centenas de dólares por mês por indivíduo, ou milhares, no caso dos planos de família. Em alguns casos, parcialmente suportados por programas de apoio públicos ou associativos.
Mas esse é apenas o custo mensal conhecido à partida. Voltemos ao exemplo inicial. Conseguimos a tal consulta com o especialista. Temos de pagar alguma coisa? Sim, quase sempre, mesmo após os deductibles, os habituais períodos anuais de carência. Quanto? Logo se vê. O custo das consultas e dos tratamentos, e que parte a seguradora cobre ou reembolsa, são quase sempre um mistério a resolver dias, semanas ou meses depois.
Mas são umas dezenas de dólares? Centenas? Milhares? Logo se vê. E não há plano gold ou silver que nos poupe à aventura. A falência está sempre à espreita.
E até agora correu tudo bem. Podia não ter sido assim. Os exames e os tratamentos prescritos podiam nem ter sido aprovados pela seguradora. O médico pede uma TAC? A seguradora diz que não é necessária. Receita-se um medicamento? A seguradora diz para se experimentar outro mais barato durante um mês.
Não vale a pena zangarmo-nos com os médicos. Eles também não podem com as seguradoras, que os desautorizam diariamente. Eles, aliás, aliam-se frequentemente aos seus pacientes para contestar as decisões das seguradoras (aconselho a leitura desta entrevista na Mother Jones).
Eis um caso próximo. O irmão de uma amiga minha, funcionário há quase 20 anos numa cadeia de supermercados que até tem muito boa reputação no campo das protecções e regalias que oferece aos seus trabalhadores, foi diagnosticado com um cancro terminal há cerca de um mês, com 40 e poucos anos. No meio dessa imensa tragédia, a garantia de que teria cuidados médicos pagos e um seguro de vida razoável a reverter para a mulher, desempregada, dava-lhe algum conforto.
Não se passou uma semana até o seguro de saúde e o de vida serem cancelados. A justificação: o segurado, que tinha estado de baixa devido aos sintomas da doença que ainda não sabia que tinha, tinha voltado mais cedo ao trabalho porque se sentia momentaneamente melhor. Ao trabalhar de baixa durante alguns dias, violou uma cláusula do contrato e perdeu os seguros.
A decisão teria consequências tão absurdamente desproporcionais (negação de tratamento e de cuidados paliativos, a falência de uma família, etc.), sobretudo por uma infracção tão inocente (querer trabalhar e retomar alguma normalidade), que a família e o empregador lá conseguiram convencer a seguradora a reverter a decisão, já sob ameaça de protesto público junto do Congresso e da imprensa.
Estes recursos são geralmente tortuosos. A Patient Advocate Foundation, uma instituição de solidariedade que medeia conflitos entre pacientes e seguradoras, estima em 27 o número médio de telefonemas necessários para resolver cada caso, indicava há dias a Reuters. As taxas de sucesso dos recursos até tendem a ser positivas para os segurados, mas as seguradoras contam com a inércia e o desconhecimento da maioria dos clientes.
O modelo de negócio multimilionário das seguradoras da área da saúde nos Estados Unidos é esse: extrair muito, muito dinheiro aos segurados, e pagar-lhes o mínimo possível, e apenas em último recurso. Delay, Deny, Defend – atrasar, negar, defender, as palavras que titulam o livro de Jay M. Feinman sobre as práticas das seguradoras norte-americanas, e que Luigi Mangione citou no seu manifesto e inscreveu nos invólucros das balas que disparou contra Brian Thompson, o CEO da maior delas, a United Healthcare, há duas semanas, em Manhattan.
Mangione, 26 anos, tinha tudo para ter uma belíssima vida. Membro de uma família abastada, formado numa universidade de elite, era um tipo bem-parecido e cheio de amigos. Até que uma lesão na coluna lhe causou dor crónica e incapacitante. Ainda não se sabem todos os detalhes do seu processo clínico, e que papel terão tido as seguradoras no seu caso, mas a raiva contra esse sistema terá sido o móbil do crime.
Não devia ser necessário escrever o que é evidente, mas aqui vai: sim, foi um crime. Ninguém nomeou Mangione juiz e carrasco, ninguém acusou Thompson de coisa alguma em tribunal, nem lhe deu possibilidade de defesa. O sentimento de injustiça e de superioridade moral que Mangione terá invocado para matar Thompson é o mesmo que leva extremistas cristãos a assassinar médicos que realizam abortos no Sul dos EUA. É um caminho sem retorno, repleto de vítimas inocentes.
No entanto, o assassínio de Thompson foi celebrado e justificado, e de forma muito pública nas redes sociais, por muitos norte-americanos. Não houve um jantar em que tenha estado nas últimas semanas em que o crime não tenha sido assunto de conversa. Com ou sem ressalvas ou adversativas, ouvi descrever-se Mangione como um justiceiro ou, no mínimo, como uma inevitabilidade, questionando-se como é que um crime destes não aconteceu mais cedo.
É que quase todos os norte-americanos viveram ou conhecem histórias de horror com as seguradoras de saúde, que também fizeram as suas vítimas. A diferença foi não terem morrido com o estrondo de um disparo em Manhattan.