Aqui na América
Chegar lá e partir aquilo tudo
Notas made in USA sobre a vida americana. Pedro Guerreiro escreve a partir dos Estados Unidos.
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Começámos o fim-de-semana a ouvir as angústias de amigos e conhecidos sobre os seus empregos. Uma professora do ensino especial a braços com a iminência de novos cortes orçamentais e o aumento das turmas. Um funcionário de uma inspecção-geral, há anos colocado na Nova Inglaterra e com vida ali criada, agora com ordem de regresso imediato a Washington, porque o escritório tem de estar cheio. Trabalhadores do sector humanitário de rastos com o congelamento da ajuda internacional. Outros a tentar salvar os seus projectos da mais ténue associação a palavras e políticas proibidas pela Administração Trump.
Terminámo-lo a fazer listas de compras. Devemos comprar mais café, não vá o Governo avançar com as taxas aduaneiras sobre a Colômbia? Afinal não foi preciso. E os ovos? Será que o preço vai continuar a subir com esta história da gripe das aves que ninguém está a levar a sério?
Os republicanos reconquistaram Washington com a promessa de tirar o Estado da vida dos americanos. Mas ele continua lá, a condicionar vidas, a entrar pelas escolas e empresas adentro, por acção e por omissão. Mudou a cor política, e isso explica muita coisa. Há promessas absurdas por cumprir, financiadores generosos por recompensar, boys e girls por empregar. Isso é normal. Mas não explica tudo.
Porque é suspenso o financiamento do PEPFAR, o programa de luta contra a sida que foi lançado por um Presidente republicano, George W. Bush, e que já salvou mais de 20 milhões de vidas em dezenas de países?
Porque são suspensos os programas de desminagem e remoção de explosivos que salvam outras tantas vidas do Iraque ao Vietname, incluindo as dos militares norte-americanos?
Porque está praticamente suspenso o trabalho dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH, na sigla inglesa), que investigam e financiam pesquisas essenciais em campos como a luta contra o cancro, de que beneficiam a América e o mundo?
Tinham prometido aos americanos que, ao menos, no meio da revolução Trump, o preço dos ovos ia baixar. Era um dos símbolos da inflação que os republicanos diziam que os democratas não conseguiam combater, e que explica em parte o desfecho das eleições de Novembro. Estavam a 2,25 dólares a dúzia semanas antes das eleições. Estão agora acima dos sete, a caminho dos oito, e nos supermercados limitam a venda a duas ou três caixas por cliente.
A culpa não é toda de Trump, como também não era toda de Joe Biden. Não tão directamente. A culpa é da gripe das aves, que chegou aos Estados Unidos em 2022, acelerou nos últimos meses e já dizimou um décimo das galinhas poedeiras.
A Administração Biden não terá feito o suficiente para travar um desastre económico em câmara lenta: as cercas sanitárias a explorações de aves e de bovinos foram insuficientemente vigiadas, e o dinheiro pedido para o reforço das análises e das medidas de mitigação chegou já só no último mês do mandato.
A Administração Trump, por sua vez, prefere fingir que não se está perante uma iminente crise de saúde pública, com a primeira morte humana no país anunciada este mês.
E ai de alguém que diga o contrário. A saúde pública norte-americana está neste momento, e pelo menos até 1 de Fevereiro, sob a "lei da rolha": organismos como o CDC (Centro de Controlo de Doenças) e a FDA (a agência federal para os medicamentos e a segurança alimentar) estão impedidos de comunicar com o público e com a comunidade médica. Não há boletins epidemiológicos, nem partilha de informação entre autoridades federais e estaduais, nem posts nas redes sociais.
A pausa nas comunicações não é inédita durante a transição entre administrações, mas esta é invulgar na sua abrangência e duração. E o que vem a seguir é igualmente incomum: a saúde pública norte-americana será, se o Senado o confirmar, liderada por Robert F. Kennedy Jr., um activista anti-vacinas que diz que este mesmo vírus da gripe das aves, o H5N1, está a ser manipulado para "alguém" ganhar dinheiro.
Na realidade, é tudo sempre muito mais complexo. A gripe das aves não será travada colocando as mãos à frente dos olhos, ou escrevendo uns posts incendiários e conspirativos nas redes sociais. O preço dos ovos não vai baixar por decreto. A América não será great again dinamitando aquilo que faz dela grande.
Prometer chegar lá e partir aquilo tudo é uma estratégia que ganha eleições, mas não pode ser um programa de governo. Vamos perceber isso pela segunda vez nos Estados Unidos.
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