Só vemos duas coisas em alguém: o que queremos ver e o que querem que vejamos

Afirmamos conhecer alguém com base no que vemos. Mas essa visão é muitas vezes moldada pelas nossas próprias expetativas e desejos, assim como pelas projeções da própria pessoa em questão.

Foto
Os animais do cavaleiro João Moura DR
Ouça este artigo
00:00
03:26

Exclusivo Gostaria de Ouvir? Assine já

Há uns tempos, revi a série Dexter. Para quem não conhece, eis a premissa abreviada: Dexter Morgan é um serial killer que mata serial killers. O protagonista trabalha como analista forense especialista em padrões de dispersão de sangue, pelo que tem acesso privilegiado a informações sobre assassinos — que depois persegue e mata. Atenção, ao contrário do que o resumo pode indiciar, a série é muito mais do que sangue e morte.

Dexter é um exímio e engraçado analista do comportamento humano e segue um código moral peculiar e um processo de pensamento meticuloso (a ideia é nunca se deixar apanhar, claro), e esse é, quanto a mim, o maior interesse desta série. Revi-a de caderno e caneta em punho para anotar os seus pensamentos e os seus pensamentos (Dexter vai narrando o que pensa) são muito mais eloquentes do que aquilo que verbaliza na interação com as outras personagens.

"Só vemos duas coisas em alguém. O que queremos ver e o que querem que vejamos.", Dexter Morgan

A dualidade da percepção. Ou não personificasse Dexter a ideia de como a superfície de alguém pode ocultar complexidades profundas…

"Não existem segredos na vida. Apenas verdades escondidas… que ficam sob a superfície.", Dexter Morgan

Afirmamos conhecer alguém com base no que vemos. Mas essa visão é muitas vezes moldada pelas nossas próprias expetativas e desejos, assim como pelas projeções da própria pessoa em questão.

"Quem diria que uma pessoa cuja profissão é maltratar animais, fosse maltratar animais na vida privada", escreveu um leitor do PÚBLICO na caixa de comentários da notícia sobre João Moura, o toureiro condenado a pena suspensa por maus-tratos e morte de galgos. Sim, às vezes leio na diagonal os comentários nas notícias. É um dos recursos que utilizo para perceber o que as pessoas pensam.

"Quem diria que uma pessoa cuja profissão é maltratar animais, fosse maltratar animais na vida privada." Um pensamento tão humano. Simpatizei com a ideia desde o primeiro instante. Bem sei que se trata de um raciocínio simplista, redutor e facílimo de desmontar: haverá inúmeros cavaleiros tauromáquicos (até poderão ser todos os outros que não João Moura, podemos especular), que, tendo como profissão espetar ferros nos costados dos animais, não maltratam os seus gatinhos e cãezinhos. Só que a percepção é tramada...

"Às vezes o simples é ser como somos.", Dexter Morgan

Na última sessão do julgamento, João Moura assumiu pela primeira vez "uma parte da responsabilidade" e justificou-se com uma fase económica menos boa. Ah, e pediu desculpa pelo sucedido.

"Os homens podem até mudar... Mas os monstros não.", Dexter Morgan

Como ir além das primeiras impressões e reconhecer as limitações das nossas próprias lentes? Na interseção entre o que queremos ver e o que querem que vejamos, está o julgamento fácil. Mas depois, há o que efetivamente existe: o sofrimento infligido por João Moura de forma permanente a 18 animais, privados de água e comida em quantidade suficiente e em condições de falta de higiene. Em suma, num quadro de profundo sofrimento. Uma cadela morreu.

João Moura, além de quatro anos e oito meses de pena suspensa e sanções pecuniárias, está impedido de possuir animais de companhia por um período de cinco anos. Cinco anos passam a correr.

"A fria voz do passageiro das trevas calou-se e eu podia voltar a ser eu de novo.", Dexter Morgan


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

Sugerir correcção
Ler 1 comentários