Tribunal Internacional de Justiça decreta medidas provisórias contra Israel
A decisão de hoje incide apenas sobre a plausibilidade de genocídio, e as medidas servem para o impedir. Não indicam qualquer sentido da decisão sobre o cerne do caso, que deverá demorar anos.
O Tribunal Internacional de Justiça (TIJ), a mais alta instância judicial das Nações Unidas, decidiu nesta sexta-feira impor medidas provisórias a Israel no âmbito da convenção do genocídio, na sequência de um pedido da África do Sul, e exigir a Israel que reporte o seu cumprimento no prazo de um mês.
Israel tem de levar a cabo medidas para aliviar a crise humanitária na Faixa de Gaza, e ainda de punir incitamento directo ao genocídio, decidiu o tribunal por uma maioria de 16-1, incluindo o voto a favor do juiz israelita. Tem ainda de tomar medidas para impedir acções genocidas, e preservar provas relacionadas com o caso, decretou o TIJ desta vez por 15-2, com os votos contra do juiz israelita e da juíza do Uganda.
O tribunal não acolheu o pedido da África do Sul de um cessar-fogo, o que seria difícil porque uma das partes, o Hamas, não é um Estado e, por isso, o tribunal não pode decretar acções para o movimento islamista.
As medidas tinham sido já vistas como prováveis por muitas pessoas especializadas em direito internacional, já que fora também a decisão tomada pelo TIJ noutro caso sob a mesma convenção, contra a Birmânia (apresentado pela Gâmbia), em Janeiro de 2020. A avaliação sobre o cerne do caso – se Israel está a cometer um genocídio na Faixa de Gaza, se está a permiti-lo ou não punir ou impedir incitamento ao genocídio – será feita muito mais tarde, podendo demorar ainda vários anos.
Para estabelecer as medidas, o tribunal teve apenas de admitir plausibilidade, o que não dá qualquer indicação sobre o sentido da decisão final, sublinhou a juíza presidente Joan Donoghue, explicando de novo que o tribunal considera apenas a urgência dado que é possível que ocorram actos que alterem a situação sobre a qual irá julgar de modo irreversível.
O tipo de prova a fazer para a conclusão do caso é muito diferente, explicaram no início do caso ao PÚBLICO as especialistas em direito internacional Tara Van Ho, da Universidade de Essex, Juliette McIntyre, da UniSA (Universidade da Austrália Meridional), e Michael Becker, do Trinity College Dublin.
Apesar de obrigar Israel a assegurar serviços básicos e ajuda humanitária, o efeito que estas medidas terão no terreno não é certo. As medidas são obrigatórias, mas a sua não execução pelo Estado só poderá ser castigada através do Conselho de Segurança da ONU. O facto de Israel ter participado no processo poderá, no entanto, mostrar disponibilidade para a aplicação das medidas.
Antes do veredicto, Tara Van Ho disse que na sua opinião “o maior benefício potencial deste caso poderá não dizer respeito à conduta futura de Israel, mas à de outros Estados que têm fornecido armas a Israel” – porque a cumplicidade com um genocídio é também um crime que pode ser levado a tribunal.
Com esta decisão a implicar um risco plausível, alguns Estados poderão analisar a exportação de armas, comentou na rede social X Heidi Matthews, professora de direito na Universidade de York, no Canadá. “Qualquer Estado que apoie Israel pode pensar se quer continuar e arriscar um processo directamente contra si”, afirmou pelo seu lado McIntyre.
TIJ versus TPI
O Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) tem sede em Haia, tal como o Tribunal Penal Internacional (TPI), mas o primeiro julga Estados e o segundo, indivíduos. No processo contra Israel no TIJ estão em causa apenas os três potenciais crimes ligados a genocídio, o crime mais grave, e nenhuns outros potenciais crimes de guerra. No TPI há uma investigação a decorrer desde 2021, que implica acções de responsáveis quer israelitas quer palestinianos que potencialmente violem quaisquer regras do direito internacional, tendo assim um leque muito mais aberto.
Antes de decretar as medidas, a juíza Donoghue referiu o ataque de 7 de Outubro do Hamas contra Israel e mais contexto para a decisão do tribunal, lembrando depois que o TIJ apenas pode pronunciar-se sobre acções que tenham que ver com a convenção do genocídio.
Em 2004, um outro caso contra Israel no TIJ disse respeito ao muro ou barreira de separação na Cisjordânia, que Israel dizia ser necessário para impedir a entrada de bombistas suicidas no seu território, mas o tribunal considerou que algumas partes, que se deslocavam da linha verde, o traçado que seria uma fronteira entre Israel e um Estado palestiniano, para abarcar partes de território da Cisjordânia ocupada, eram ilegais.
Ao contrário do que aconteceu nesse caso, Israel decidiu desta vez participar do processo e apresentar os seus argumentos ao tribunal, que emitiu apenas uma opinião não vinculativa.
Van Ho afirmou ainda agora ao PÚBLICO que, desde os dois dias da abertura do caso no início de Janeiro, o Governo de Israel tem levado a cabo acções que dão mais força aos argumentos da África do Sul. A equipa legal sul-africana salientou que 80% das pessoas em situação de fome catastrófica no mundo estão actualmente em Gaza, e essa fome não é consequência natural da própria guerra, mas sim da limitação à entrada e à distribuição de ajuda.
“Esta semana, vimos manifestantes israelitas impedirem a entrada de camiões humanitários em Gaza, e parece que o Governo de Israel não fez o suficiente para garantir o acesso desses camiões”, notou. “Igualmente preocupantes são as notícias de que Israel está agora a impedir a entrada e a distribuição de canetas de insulina para crianças.”
Essas questões estão ligadas ao que é considerado “condições de vida calculadas para provocar” a destruição física de um grupo, que é incluída nos vários crimes sob a acusação de genocídio, além de matar membros do grupo ou causar dano grave, ou impor medidas para impedir nascimentos e a transferência forçada de crianças de um grupo para outro.
Para a decisão sobre o genocídio, seria preciso provar intenção genocida, o que é extremamente difícil e não aconteceu ainda até hoje: o máximo que foi provado, lembram os especialistas, foi o facto de a Sérvia, no caso em que foi acusada pela Bósnia, não ter impedido um genocídio em Srebrenica (1995).