José Sócrates vai ser julgado por 22 crimes, três deles de corrupção

Tribunal da Relação de Lisboa inverteu decisão de juiz Ivo Rosa e confirmou grande parte da acusação do Ministério Público.

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Procuradores (ao fundo) recorreram da decisão instrutória assinada pelo juiz Ivo Rosa. EPA/MARIO CRUZ/POOL
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Existem indícios suficientes para o ex-primeiro-ministro José Sócrates e 21 outros arguidos da Operação Marquês serem julgados por boa parte dos 188 crimes de que foram acusados, incluindo corrupção, decidiu esta quinta-feira o Tribunal da Relação de Lisboa. Fica assim sem efeito grande parte da decisão do juiz de instrução Ivo Rosa, que, em Abril de 2021, arquivou 171 crimes da acusação, mantendo de pé apenas 17. O acórdão é assinado pelas desembargadoras Raquel Lima, Micaela Rodrigues e Madalena Caldeira.

Dos 28 arguidos acusados, Ivo Rosa apenas tinha mandado cinco para julgamento: Sócrates, o antigo banqueiro Ricardo Salgado, o empresário Carlos Santos Silva, o ex-ministro socialista Armando Vara e o antigo motorista do ex-primeiro-ministro João Perna. Nomes sonantes como os antigos homens fortes da Portugal Telecom, Henrique Granadeiro e Zeinal Bava, o empresário Joaquim Barroca, do Grupo Lena, e Hélder Bataglia, o empresário luso-angolano que fundou a Escom, viram arquivados todos os crimes que lhes eram imputados.

Esta quinta-feira, a Relação de Lisboa decidiu que deveriam ser julgados quase todos: Bava, Granadeiro, Barroca, Hélder Bataglia, a ex-mulher de Sócrates, Sofia Fava, e várias empresas do Grupo Lena, num total de 22 arguidos. Ao ex-banqueiro Ricardo Salgado volta a ser assacada corrupção e branqueamento de capitais, num total, segundo o Conselho Superior da Magistratura, de 11 crimes. De fora do julgamento apenas vão ficar cinco das empresas acusadas e a filha do ex-ministro socialista Bárbara Vara, a quem o Ministério Público imputava dois crimes de branqueamento de capitais.

Apesar de decidirem remeter para julgamento 22 dos 28 acusados, as juízas arquivam crimes relativamente a 14 arguidos. E deixam várias críticas ao juiz Ivo Rosa, que neste momento é, também ele, desembargador do Tribunal da Relação de Lisboa.

Os três crimes de corrupção passiva agora atribuídos novamente ao antigo líder socialista — a que se somam outros 19 de branqueamento e fraude fiscal — dizem respeito a outros tantos negócios: o financiamento de mais de 200 milhões de euros atribuído pela Caixa Geral de Depósitos ao resort de Vale do Lobo, promovido por um grupo de empresários liderado por Helder Bataglia, as relações do grupo Espírito Santo com a Portugal Telecom e ainda os projectos estatais a que se candidatou o grupo Lena, como o concurso para o TGV. Esta quinta-feira foram validadas as suspeitas de que José Sócrates usou o poder que detinha para beneficiar estes empresários do sector privado, que o subornaram.

As desembargadoras acusam o juiz de instrução da Operação Marquês de ter sido demasiado crédulo, ao descartar as suspeitas de que José Sócrates recebeu perto de seis milhões do grupo Lena como pagamento pela sua intervenção no processo da concessão do primeiro troço da Alta Velocidade, entre o Poceirão e Caia: “Justifica a falta de indícios, relativamente à existência dos ditos pagamentos, nas declarações do arguido José Sócrates e na interpretação que o mesmo fez dos documentos relativos às viagens à Venezuela (...). Confessamos que estas ilações do senhor juiz denotam uma certa ‘candura/ingenuidade’, pois é desde logo evidente que, tratando-se de actos ilícitos, os mesmos [actos] não vêm escritos em documentos.”

E dizem que o juiz devia ter apreciado as provas que lhe foram apresentadas pelo Ministério Público na globalidade, e não de forma segmentada. “Neste processo, essa exigência é ainda maior porque os meandros e os caminhos traçados pelos arguidos, na vertente da acusação, não são lineares, mas tortuosos, cheios de manobras de diversão”, escrevem as magistradas. Mesmo reconhecendo o seu empenho em efectuar uma análise exaustiva do material recolhido pelos procuradores encarregados da investigação, não deixam de o criticar também por ter exorbitado as suas funções: "Parece-nos que a certa altura se afastou do objectivo da instrução e realizou diligências típicas de um verdadeiro julgamento".

Detido na noite de 21 de Novembro de 2014 no aeroporto de Lisboa quando regressava de Paris, o antigo líder socialista ficou depois em prisão preventiva, na cadeia de Évora, até 4 de Setembro, altura em que regressou a casa em prisão domiciliária, vigiado pela PSP. Acabou por ser libertado a 16 de Outubro de 2015. Diz o Ministério Público que a vida de luxo que levava era feita não com empréstimos desinteressados do seu amigo Carlos Santos Silva, igualmente arguido no processo, mas com dinheiro proveniente das “luvas” que lhe eram pagas em troca dos favores que fazia àqueles empresários.

O caso gira à volta de mais de 34 milhões de euros reunidos entre 2006 e 2015, a maior parte dos quais guardados em contas offshore na Suíça controladas pelo amigo do ex-primeiro-ministro Carlos Santos Silva. “Temos como certo que este valor pertencia ao arguido Sócrates”, diz o acórdão desta quinta-feira. Que assinala a forma despreocupada como lidava com o dinheiro: “Perdia frequentemente a noção do que gastava e desconhecia sistematicamente o saldo da sua conta bancária, chegando a utilizar cartões de débito e/ou de crédito sem que existisse plafond para esse efeito.” Não usando o serviço de homebanking, a certa altura “deixou de exercer qualquer controlo sobre as suas despesas”. Entre 2011 e 2014, a sua conta na Caixa Geral de Depósitos suportou despesas superiores a um milhão de euros.

As juízas também não ficaram convencidas de que teria sido a mãe do antigo governante a custear-lhe férias pagas em numerário: “Não se mostra indicado que nas contas bancárias de Maria Adelaide Monteiro existam operações de levantamento compatíveis” com os dez mil euros com que José Sócrates disse às autoridades andar no bolso. “Nem razoável, sobretudo nos tempos actuais, que alguém viaje com grandes quantias em numerário.” Pelo contrário, crêem não haver quaisquer tipo de dúvida de que Ricardo Salgado fez pagamentos ao ex-líder do PS: "Os recebimentos de dinheiro parecem-nos evidentes. Há todo um esquema montado (...)". E Ivo Rosa volta a ser alvo de reparo. "Obviamente que não vamos encontrar prova directa dos factos. Não se percebe o espanto do senhor juiz de instrução quando diz que nada consta dos extractos bancários do arguido Sócrates", refere o acórdão.

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