Um dia de Inverno daqueles em que a chuva cai pesada ou mansa mas raramente cessa e saímos para jantar. Ementa: gelados – ainda para mais, de sabores que unem ervilha e manjericão ou abóbora e café. Bizarro? É precisamente esse o conceito da nova gelataria de Lisboa, aberta no sábado, 20 de Janeiro, em plena Baixa. Na Bizzarro Gelato convidam-se os clientes a “saltar fora da caixa” para provar “emparelhamentos improváveis” de ingredientes, “sem nunca comprometer a cremosidade do gelado ou o sabor interessante”, define o proprietário, Frederico Calado. “O objectivo é que um sabor de fruta mais um sabor salgado, por assim dizer, dê um sabor completamente transcendental.” O cérebro dá um nó. Depois pede mais.
“O nosso palato é tão lato que, para mim, não faz muito sentido restringirmos as nossas opções de gelado a 15 frutas, que é o que a maioria das lojas tem”, aponta o farmacêutico, especializado em epidemiologia. É o irmão, Filipe Blanquet, formado em design e pastelaria, o gelateiro à frente da Bizzarro. “Eu sou o idiota que vem com as ideias dos sabores, depois ele faz acontecer. Como também tirei o curso [de gelataria] e sou farmacêutico, ajudo com tudo o que seja trabalhar com açúcar e pontos de congelação. Ele é o artista. Eu sou a parte mais científica e técnica”, compara.
A textura do gelado de chocolate negro com malagueta, a lembrar uma mousse densa com um picante suave a acordar a garganta, é divinal. Já o de tomate e coco é mais sui generis e tem segredo, daqueles que não se revelam, para manter o sabor a tomate fresco. A ideia não é criar sabores estranhos que não queremos repetir (lembra-se dos gelados de sardinha?), antes encontrar duplas incomuns em gelado mas que combinam, como o de beterraba e laranja, inspirado “num sumo de um restaurante vegetariano em Algés”, onde o açúcar e a acidez da laranja cortam a componente mais térrea e mineral da beterraba. Já no de caramelo e molho de soja, este último ingrediente acaba por vir “substituir completamente o sal” usado para fazer o gelado de caramelo salgado “mas dá-lhe um sabor completamente diferente”. Leva-nos aos aromas de café, é sumptuoso, guloso, num jogo entre o doce, o amargo, o salgado e o umami.
Sair um bocadinho da caixa
Para a apresentação à imprensa, Frederico e Filipe decidiram incorporar seis dos 12 gelados num menu de degustação, criado pelo chef Mário Pinheiro – e, se ao início, torcemos um pouco o nariz a mais misturas com magret de pato ou tempura de ostra, por exemplo, a verdade é que saímos de lá com vontade de repetir, agora numa carta disponível diariamente ao público ou em eventos esporádicos (para já, apenas uma ideia para o futuro). “Ajuda os sabores terem uma componente savory”, assume Frederico, o que os torna particularmente gastronómicos.
O primeiro gelado, por exemplo, servido com atum fumado, foi o de cebola e manga, inspirado pelas viagens de Frederico à Ásia, onde a combinação está muito presente na gastronomia. O segundo, sobre um crocante de alheira, é mais surpreendente: alho e maçã. “Assamos o alho até ao ponto em que ele já não consegue caramelizar mais. A partir daí, perde aquela pungência e fica autêntica manteiga que, combinada com a maçã, também assada, vai ajudar a elevar a doçura do gelado. O nosso cérebro pensa que é um sabor salgado, por causa do alho, mas não há sal nenhum. Depois há o doce do açúcar e da frutose, e a acidez da maçã – já temos três dimensões.”
“É essa a nossa filosofia”, define Frederico. “Brincar e estimular a pessoa, de alguma forma, a sair um bocadinho da caixa.” Claro que para quem cria as combinações de sabores acaba por ser também “uma espécie de desafio intelectual”. “É possível fazer um gelado de alho? Como? E estamos semanas, senão meses, a pensar como é que vamos conseguir incorporar alho no gelado sem o matar.” É esse desafio que os estimula, que “dá gozo e gosto”.
Uma pandemia, dois irmãos, três marcas de gelados
“O que provocou tudo foi a pandemia.” Frederico já tinha decidido regressar da Suíça, onde morava há oito anos, e depois de um negócio que acabou por não avançar em Portalegre, decidiu mudar-se definitivamente para Sesimbra em 2021 e criar ali parte do projecto que tinha imaginado, tudo Echo: dois apartamentos para alojamento local, um espaço para crianças, um cowork a abrir em breve, e uma gelataria, esta em parceria com o irmão.
“O Filipe estava no Hotel da Marinha, em Cascais, e no início da pandemia o hotel mandou toda a gente para casa.” O projecto acabou por surgir como uma forma de “resolver a situação e, ao mesmo tempo, criar uma oportunidade” para os dois irmãos se reaproximarem.
Depois das formações em gelataria em Bolonha, a Echo Gelato Lab abriu na marginal de Sesimbra em Julho de 2022. “É mais uma gelataria tradicional em termos de tipo de sabores, mais simples, receitas italianas”, define Frederico. Existem sempre 18 sabores à escolha, com um deles, pelo menos, a ser substituído todas as semanas, num total de “cerca de 50 sabores” diferentes.
Entretanto, venceram um concurso da Junta de Freguesia de Belém, em Lisboa, e passaram a contar também com uma Piaggio adaptada à venda ambulante de gelados em frente à Torre de Belém, “durante três anos, pelo menos”, baptizada de Ciano Gelato Mobile. No ano passado, foram seleccionados pela Hermès para estarem presentes no quiosque pop up da marca em frente ao Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia (MAAT), com picolés artesanais. E numa parceria com O Melhor Croissant da Minha Rua, estão também na loja do grupo em Évora, além de participarem, ocasionalmente, em eventos públicos e privados.
Cerveja preta e marmelada
No entanto, ficou sempre “o bichinho de vir para Lisboa” abrir uma loja, confessa Frederico. Quando surgiu a oportunidade de ficarem com uma antiga garrafeira na Rua de São Julião “não pensaram duas vezes”. Três meses depois, a Bizzarro Gelato abriu portas no dia 20 de Janeiro – e se vem em pleno Inverno, desta vez, nem foi para ser bizarro. “Calhou” a loja estar pronta e “fazia sentido” começar a testar a equipa, “marcar presença”, e “preparar o Verão”.
A ideia de trocar os sabores mais convencionais por combinações improváveis no novo espaço, no entanto, tinha surgido em Sesimbra, quando começaram “a introduzir sabores mais de autor”. O primeiro foi de pêra e moscatel, mas o momento em que acharam “que era possível ter um conceito destes” foi quando criaram a receita de cerveja preta e marmelada e, de repente, “começou a ter tracção em Sesimbra”. “Começámos de forma privada a testar combinações de sabores diferentes.”
Alguns migraram para a Bizzarro, como aqueles dois; outros virão mais adiante, quando o calor pedir aromas mais frescos, como abacate e lima, ananás e manjericão, ou melão e gengibre; outros são, para já, exclusivos da loja lisboeta, como morango e azeitona, uma criação de Filipe, ou ananás e pimento vermelho, dica de uma amiga de Frederico.
No total, serão sempre 16 sabores (a maioria veganos): uma dúzia de combinações bizarras e quatro convencionais, “mais por causa das crianças”, com baunilha, chocolate de leite, morango, e pistácio. Depois, todos os meses, haverá, pelo menos, um sabor a sair e outro a entrar. E muitos, muitos testes. Banana e sésamo não funcionou, nem feta com maçã e funcho, por exemplo. Mas há outros na calha que lhes parecem promissores, como banana e vinagre balsâmico, chocolate branco e miso, chèvre com compota de pêra e cravinho, ou stracciatella com infusão de caruma. O clássico amendoim e tomate das sanduíches norte-americanas não resultou, “mas ainda não desistiram”. Além dos gelados artesanais, há apenas água, café, e a possibilidade de provar o gelado dentro de um brioche prensado e selado.
Frascos e cornucópias
Com tanta bizarria de sabores, a loja não poderia ser convencional. À porta, um carrinho de venda ambulante de gelados faz as vezes de balcão. As paredes estão forradas com estantes prateadas, cobertas de frascos com as compotas caseiras que produzem para dar corpo aos gelados de fruta, caramelo ou outros ingredientes de compra, como sal, chocolate ou canela. “É como se fosse a nossa arrecadação, a nossa zona de trabalho”, aponta Filipe, criando a ligação à produção, para já, feita integralmente em Sesimbra. Entre os frascos, as cornucópias de cerâmica vão encher-se de especiarias ou ervas secas para “dar um bocadinho de fragrância à loja”.
Ao centro, entre os dois pilares que sustentam os tectos abobadados, está a única mesa do espaço, de prateado ondulante. E, ao fundo, a primeira exposição, com roupas e acessórios feitos em açúcar por Filipe. A ideia é que a decoração, e a exposição, “vá mudando um bocadinho sazonalmente, como os gelados”, acrescenta Frederico. “Queremos a loja viva.” Já se for à casa de banho, terá de encontrar a porta secreta e entrar no mundo algo hipnótico que a dupla Maxuxa, de Sesimbra, criou para aquele espaço.
Até a banda sonora foi feita de propósito para a loja por Frederico, coleccionador de discos e antigo DJ, para traduzir o conceito do espaço, num leque ecléctico de músicas “estimulantes” — “o que, às vezes, não quer dizer agradável”. “Uma vez mais, é forçar um bocado a pessoa a sair da zona de conforto. Nós gostamos de ser estimulados e de estimular. A reacção [de cada cliente] será a que será.”
A Fugas foi convidada para experimentar a Bizzarro Gelato