Oligarca russo acusa a Sotheby’s de ter ajudado a vigarizá-lo

Dmitry Rybolovlev tenta provar num tribunal de Nova Iorque que a leiloeira conspirou com o negociante Yves Bouvier para o defraudar em compras de arte no valor de quase dois mil milhões de euros.

NEW YORK, NY - NOVEMBER 4: People are seen in front of the Amadeo Modigliani's Tête a rare stone carving sold for $70.7 million during an auction at Sotheby's in New York, United States on November 4, 2014. (Photo by Selcuk Acar/Anadolu Agency/Getty Images)
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Tête, escultura de Modigliani vendida na Sotheby's de Nova Iorque por 76 milhões de euros a Dmitry Rybolovlev Selcuk Acar/Anadolu Agency/getty images
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O art dealer suíço Yves Bouvier wikicommons images
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No processo que opõe o multimilionário russo Dmitry Rybolovlev à Sotheby’s, cujo julgamento começou em Nova Iorque no início da semana passada, e que tem esta segunda-feira uma nova sessão, não têm até agora sido produzidas provas concludentes de que a leiloeira de origem britânica tenha efectivamente conspirado com o empresário e art dealer suíço Yves Bouvier para defraudar o oligarca numa série de compras de arte, pelas quais este pagou, entre 2003 e 2014, cerca de dois mil milhões de dólares (1,83 mil milhões de euros).

Rybolovlev chegou entretanto a acordo, no final do ano passado, com o próprio Yves Bouvier, no âmbito de um anterior processo que lhe movera na Suíça, levando um tribunal de Genebra a encerrar o caso. Este acordo, cujos termos são confidenciais, veio aparentemente pôr fim a uma litigação judicial que se arrastou durante uma década por tribunais de todo o mundo, de Hong Kong a Singapura e da França à Suíça e ao Mónaco, sem que nenhum tribunal tenha até agora dado como provadas as acusações contra Bouvier, o que deixa a acusação, no julgamento que agora decorre em Nova Iorque, na situação de ter de provar que a leiloeira foi cúmplice de alguém cuja culpabilidade não foi, ela própria, demonstrada.

Independentemente do seu desenlace jurídico, a expectativa é que este processo “abra uma rara janela para o sigiloso funcionamento interno do mercado de arte, onde mesmo os compradores raramente sabem a quem estão a adquirir tesouros que valem uma fortuna”, comenta o diário New York Times.

E se o valor e a importância histórica e artística das peças envolvidas – que incluem o Salvator Mundi de Leonardo da Vinci, leiloado em 2017 pelo preço recorde de 382 milhões de euros, a par de obras de artistas modernos, como Van Gogh, Picasso, Klimt, Magritte ou Modigliani – bastariam para justificar o interesse despertado por este julgamento, ele é ainda apimentado, como observou ao mesmo jornal um oficial reformado do FBI, pela insólita presença de “um oligarca como Rybolovlev a testemunhar, e a aceitar ser contra-interrogado, numa sala de tribunal dos Estados Unidos”.

Origens de uma fortuna

Cardiologista de formação, Rybolovlev começou por fazer dinheiro, no início da perestroika, com uma empresa que oferecia tratamentos médicos inovadores, mas rapidamente passou a negócios ainda mais lucrativos: em 1992 criou a sua primeira empresa de investimentos, em 1994 fundou um banco e no ano seguinte vendeu tudo para concentrar o seu capital na indústria do potássio, que elevaria a sua fortuna a um nível que mais tarde já lhe asseguraria lugares respeitáveis (74.º em 2010) na lista de multimilionários da revista Forbes.

Yves Bouvier talvez não tenha dinheiro para comprar clubes de futebol –​ Rybolovlev é proprietário do Mónaco e do clube belga Cercle Brugge –, mas é também detentor de uma fortuna considerável. Em 2017, foi acusado de ter lesado o fisco suíço em cerca de 100 milhões de euros, e deu ainda nome ao Bouvier Affair, como ficou conhecida a sucessão de processos que lhe foram movidos por diversos compradores, incluindo Rybolovlev, que o acusam de ter mentido para inflacionar o valor de obras de arte.

O oligarca argumenta que Bouvier funcionava como seu agente, com a missão de negociar a aquisição de obras de arte ao melhor preço possível, serviço pelo qual cobrava comissão. O suíço negou sempre esta tese, afirmando que actuava como negociante, assistindo-lhe o direito de conseguir de Rybolovlev o preço que este estivesse disposto a pagar. Se os métodos que utilizava não eram propriamente ilegais, ainda nenhum tribunal o determinou. E dificilmente isso virá a acontecer, uma vez que no acordo assinado em Genebra ambas as partes se comprometem a não regressar à litigação.

Bouvier não é réu no processo que corre em Nova Iorque, no qual a acusação terá agora de provar que a Sotheby’s tinha conhecimento de que o suíço andava a vigarizar Rybolovlev e o ajudou a manter a impostura, quer manipulando as suas avaliações das obras, quer omitindo que Bouvier as comprara. Alegações que a leiloeira nega, não obstante ter funcionado como intermediária em vendas privadas a Bouvier de 12 das 38 obras que este revendeu a Rybolovlev.

O caso Salvator Mundi

As sessões da semana passada no tribunal nova-iorquino têm-se focado no interrogatório do principal responsável da Sotheby’s pelas vendas privadas, Samuel Valette, que aparece envolvido em várias transacções com Bouvier, incluindo a que diz respeito ao Salvator Mundi, negócio que acabou, aliás, por ser bastante lucrativo para Rybolovlev.

Em Março de 2013, quando a atribuição a Leonardo da Vinci era recente e bastante contestada, Bouvier e Valette encontraram-se com o oligarca, levando consigo o quadro para ser examinado. Nas semanas seguintes, o dealer suíço terá informado o empresário russo de sucessivas (e inexistentes) ofertas que o proprietário teria recusado até aceitar quase 117 milhões de euros. A 2 de Maio, Bouvier adquiriu o quadro através da Sotheby’s por 76,6 milhões de euros, tendo-o vendido no dia seguinte a Rybolovlev pelos referidos 117 milhões. Dois anos depois, alegadamente para evitar as suspeitas do oligarca, Bouvier requereu à Sotheby’s que avaliasse a obra, e foram apresentadas provas em tribunal de que Valette teria então sugerido a um colega seu da leiloeira que avaliasse a obra em 117 milhões, valor muito próximo do que Bouvier pedira. Mas em 2017, Rybolovlev leiloou a pintura na Christie’s, onde esta alcançou o preço recorde de 382 milhões de euros.

A defesa da Sotheby’s tem insistido na tese de que não há ligação entre a leiloeira e o milionário russo, observando que nas várias transacções que o tribunal tem questionado não foi apresentada nenhuma comunicação directa entre Valette e Rybolovlev.

A própria relação entre Bouvier e o oligarca só descambou no final de 2014, e apenas por um acaso, segundo Rybolovlev testemunhou na passada terça-feira em tribunal. Em 2013, o milionário comprara através de Bouvier uma escultura de Modigliani, La Tête, por 76 milhões de euros – ficou provado em tribunal que o verdadeiro vendedor era o suíço, que a tinha comprado pouco antes por metade do preço –, e no ano seguinte o empresário voltou a usar os seus serviços para adquirir uma pintura do mesmo artista, Nu Reclinado em Coxim Azul, por 108,2 milhões.

Em Dezembro, Rybolovlev encontrou-se por acaso com um consultor de arte nova-iorquino, Sandy Heller, que lhe contou que um cliente seu, proprietário da equipa de basebol New York Mets, vendera um Modigliani por 85,7 milhões. O mesmo que o oligarca comprara através de Bouvier por 108 milhões. Só então este percebeu que Bouvier andava há anos a comprar arte para a revender a preços mais altos. “Fiquei em estado de choque”, disse em tribunal, acrescentando que um amigo que assistia à conversa receou que estivesse a ter um ataque cardíaco.

O episódio deverá ser de novo evocado esta segunda-feira no tribunal de Nova Iorque, já que está prevista a audição do mesmo Sandy Heller que, aparentemente sem intenção, denunciou a Rybolovlev a duplicidade do suíço.

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