O rapaz que gostava de desenhar

Um rapaz nascido em Lisboa em 1929 cedo demonstrou uma capacidade invulgar para o desenho. Apesar da valia do seu traço, era comum destruir os trabalhos depois concluídos. Cinco dezenas sobreviveram.

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Os desenhos infantis sempre seduziram educadores, psicólogos, historiadores da arte e artistas. Nas melhores dessas obras, como na arte, o mundo perde o seu peso, escreveu André Malraux em As Vozes do Silêncio (1953). A tendência da criança para o desenho é facto a que assistimos — desenhar é linguagem e jogo com regras próprias que flui, atravessa idades e culturas, é um rasto tangível ao qual se pode voltar, manifestação remota da vida humana e exercício complexo de afirmação do sujeito.

Paul Klee (1879-1940) deixou-se influenciar pelas suas produções de infância. Ao apreciar os desenhos do seu filho Félix, esperou encontrar o estado psíquico primordial, que tanto procurou para a sua arte. Mais tarde, pedia que não comparassem os seus desenhos com os das crianças, eram mundos à parte. Na carta ao seu amigo Alfred Pohl (1928-2019), Jean Dubuffet (1901-1985) escreveu: “Em geral, gosto muito dos desenhos das crianças, elas estão muito mais livres do que os adultos das inibições criadas pelo prestígio da arte homologada: fazem o que as diverte sem se preocupar em fazer rir.” (Jean Dubuffet, Prospectus et tous écrits suivants, Paris, Gallimard, 1962). Na Collection d’Art Brut (Lausanne, Suíça) encontra-se uma colecção de desenhos infantis, reunida por Dubuffet em escolas e vários países.

O autor dos desenhos aqui mostrados nasceu em Lisboa, no mês de Março de 1929. Filho de um tenente do Exército, a mãe ocupou-se da casa. Desde pequeno, gostou de desenhar — era o seu maior entretenimento, contínuas horas dessa actividade que agradava ao pai. Utilizava lápis de cor e grafite. Em cada um dos períodos do seu crescimento, dedicou-se a um tema: desenhou navios, automóveis, carros eléctricos (Carris), guindastes, anúncios e figuras humanas. Este interesse pelas “máquinas”, carros, barcos, aviões, pelo movimento e as engrenagens é típico durante a infância e a adolescência. Na nossa cultura, esta “magia” predomina nos rapazes, sem aqui descartarmos a influência que as circunstâncias culturais exercem sobre os indivíduos.

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Com frequência, iam dar com ele na sala onde se isolava para desenhar, a falar sozinho, a repetir sempre as mesmas palavras ou a correr à volta da mesa, com bilhetes de eléctrico na mão “anunciando”: “Belém, Algés, Santo Amaro, Graça, etc., destinos de parte dos “eléctricos” de Lisboa. Quis desenhar a planta da cidade: insistiu com o pai na pergunta onde desembocavam as ruas. Perante a obstinação do filho, “cansado” de explicar e dar respostas às perguntas, quase sempre difíceis, comprou-lhe uma planta detalhada da cidade. Dias mais tarde, devolveu-a ao pai, dizendo que já sabia os nomes das ruas: onde começavam e terminavam. Terá memorizado o nome e a localização de 700 ruas de Lisboa e concebeu os seus próprios mapas da cidade.

Alguns dos desenhos, encontrei-os na Faculdade de Medicina (Universidade de Lisboa), onde preparo uma monografia sobre uma colecção de desenhos imaginados por crianças portuguesas nos idos anos 1940/50, recolhidos por Vítor Fontes (1893-1979). Os temas representados nesta colecção são cenas de luta, casas e caminhos, animais, a família, fogos, “fantasmas e bruxas”, fenómenos cósmicos e representação de astros, futebol e espectáculos — algumas das representações estão carregadas de sarcasmo; são exemplos formidáveis da concepção dos instantes vividos ou imaginados pelas crianças de várias idades, provável desenlace de emoções e sentimentos —, registos de um tempo da infância em que os impulsos individuais, a catarse dos medos, os desejos sublimados e os objectos simbólicos em presença, ao transporem as épocas, são humanamente actuais.

Descobrir as linhas que definem as coisas

Os desenhos foram feitos à vista, a partir de um modelo ou de memória; nunca fixava o olhar no que pretendia desenhar, piscava os olhos e depois registava no papel os traços, memórias do observado, não consentia que o ensinassem. Por exemplo, copiou e ampliou a partir de uma fotografia o retrato do pai e da irmã, representações bem conseguidas. Depois de concluídos, era também vulgar destruir os trabalhos. No carro, pedia ao pai para tirar apontamento dos letreiros. Concebia depois os seus letreiros, com as palavras ou frases dos néones vistos. Devido a comportamento “estranho e irregular”, frequentou a escola por pouco tempo, mas aprendeu com facilidade a ler e a escrever, sem nunca “fazer exame”.

Quando chegou ao Instituto Médico-Pedagógico António Aurélio da Costa Ferreira (Lisboa), onde ficou internado para observação, já tinha sido visto por dois consagrados clínicos portugueses. No instituto, primeiro em 1943 e depois, em 1944, foi acompanhado por Vítor Fontes, professor de Anatomia da Faculdade de Medicina, partícipe da geração singular de académicos em que se encontram Costa Ferreira, Henrique de Vilhena, Egas Moniz, Sobral Cid e Barahona Fernandes. Para este último, Fontes foi, em Portugal, o principal criador da especialidade médica de pedopsiquiatria, reconhecida pela ordem dos médicos (H. Barahona Fernandes, O Professor Vítor Fontes, Memórias da Academia das Ciências, 1970).

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Com as dificuldades do tempo em que viveu, sem alinhamento com o regime, coube-lhe a árdua tarefa, entre 1941 e 1964, de organizar e dirigir o Instituto Costa Ferreira, aquela que foi em Portugal a mais importante entidade no atendimento de crianças com “necessidades educativas especiais” e de formação de professores nessa área. As equipas desta entidade integravam médicos, psicólogos, assistentes sociais e professores. Durante décadas, foram observadas e cuidadas milhares de crianças de várias regiões do país. Os resultados dessas observações, “casos” considerados pertinentes para a ciência, deram origem a artigos publicados no Boletim do Instituto A. A. Costa Ferreira — A Criança Portuguesa, importante publicação científica de mérito, com projecção internacional.

Em 1936, quando tinha 7 anos, o rapaz foi observado por Egas Moniz (1874-1955), que lhe receitou calmantes. As “queixas” da família centravam-se na alteração do comportamento sobretudo a partir daquela idade, reconhecendo ele próprio que era doente, diferente dos seus pares. Sentindo isso com algum desagrado, preferia isolar-se a estar com os outros. Quando o repreendiam, ficava muito tenso, triste e pensativo, por longo tempo, com a cabeça entre as mãos. O pai dizia que o filho era o “barómetro da casa”: próximo das mudanças do tempo piorava muito, ficava excitado, corria pela casa, tornava-se agressivo, implicava com todos e fazia muito barulho. Só bebia por copos lavados por ele, lavava constantemente as mãos e gastava “uma eternidade” a despir-se quando ia para a cama.

Em 1938 e nos dois anos seguintes foi acompanhado, “sem resultados favoráveis”, mas em empatia mútua, por Sobral Cid (1877-1941), então director do Manicómio Miguel Bombarda (Lisboa). A morte de Sobral Cid, o mesmo que queria “dar ao rapaz umas injecções” que preparava e administrava, levou os pais a consultar Vítor Fontes.

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Reuni cinco dezenas de desenhos feitos durante o internamento no Instituto Costa Ferreira. Tal como surgem ao nosso olhar, impressionam pelo equilíbrio da composição e o rigor dos contornos do representado, deles despontam semelhanças com os de crianças “artisticamente dotadas”. Algumas dessas crianças, como Nadia Chomyn, foram objecto de estudo. Chomyn nasceu em Nottingham, em 1967, e era filha de pais ucranianos, ambos engenheiros, que imigraram para Inglaterra logo após a II Guerra Mundial. Diagnosticada com perturbação do espectro do autismo (PEA), Nadia foi “estudada” por Lorna Selfe, a psicóloga que a acompanhou vários anos (Lorna Selfe, Nadia: A case of extraordinary drawing ability in autistic child. London: Academic Press, 1977). A “sobredotação” no domínio do desenho quase sempre irrompe precocemente, mas, como sucedeu a Nadia, pode desaparecer na adolescência, quando outras funções psíquicas tomam lugar.

No caso do rapaz que passou a ser seguido por Vítor Fontes, os desenhos evidenciam capacidade de representação realística; a memória visual dos detalhes e a invenção de novos ângulos de visionamento das “máquinas” sobressaem; há refinamento dos contornos e verosimilhança, que impressionam. Domina também os riscadores usados — lápis de grafite e de cores.

Sobre a “arte da infância”, Fontes deixou vários estudos notáveis. Em notícia publicada no Jornal do Médico, sobre as actividades do instituto, referiu haver ali mais de 15 mil desenhos — “documentos humanos ricos de sentido psicológico e de significado médico e, em muitos casos, de valor artístico, alguns com singulares coincidências com as obras de artistas consagrados” (Jornal do Médico, XV, vol. XXVII, 1955). Todas as crianças observadas nas consultas externas, durante o internamento, ou as que faziam parte das “classes especiais” tuteladas pelo instituto, desenhavam; a par de outros “testes”, serviram como “complemento diagnóstico” e recurso facilitador do diálogo entre as partes, as crianças, os médicos, psicólogos e os professores. Duas centenas desses desenhos, organizados em categorias temáticas, foram mostradas durante o X Congresso Mundial de Pediatria (Lisboa, 1962) sob o título — “Alguns aspectos psicopatológicos do desenho feito por crianças mentalmente irregulares”.

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Apesar de no seu gabinete ter guardado alguns desenhos deste rapaz, Vítor Fontes não se ocupou da descrição deste “caso”, talvez por não revelar “problemas” nas aprendizagens escolares. Considerou-o como “um rapaz com psicologia bastante estranha, inteligente, com gosto para desenhar a ser seguido pela equipa do instituto” (1944).

Se os desenhos de Nádia e deste rapaz impressionam os observadores, a causa desta surpresa talvez se deva ao facto de os mesmos conseguirem “captar a alma do ser ou da coisa desenhada” — a acertada ideia de José Gil usada no seu recente livro (Morte e Democracia, Lisboa, Relógio d’Água, 2023), que, na verdade, ajuda a responder à pergunta: o que significa desenhar?

Deste rapaz, passadas oito décadas, subsistem os seus desenhos — são sinais da sua presença, inspirados no real, na cidade de Lisboa, que a sua sensibilidade não deixou escapar.


Investigador

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