“Cada vez que um país ignora os princípios universais dos direitos humanos, alguém paga um preço”
2023 foi “um ano com algumas das piores crises e desafios da memória recente”, escreve a Human Rights Watch no seu relatório anual.
O ano de 2023 não foi um bom ano para os direitos humanos, não apenas em relação à “supressão dos direitos no mundo” e às “atrocidades em tempo de guerra”, mas também por causa da “indignação selectiva dos governos e da diplomacia transaccional, que implicou custos profundos para os direitos do que não participam nestes acordos”, lê-se no relatório anual da Human Rights Watch, apresentado esta quinta-feira.
“O sistema internacional em que confiamos para proteger os direitos humanos está em risco, com os líderes do mundo a fecharem os olhos quando os princípios universais dos direitos humanos são ameaçados”, afirmou Tirana Hassan, directora executiva da organização não governamental.
“Cada vez que um país ignora os princípios universais dos direitos humano, alguém paga um preço, e às vezes esse preço é a vida das pessoas”, sublinhou. O “persistente assalto aos direitos humanos que se espalha pelo mundo” avança à medida que os governos ignoram as suas obrigações legais” em “busca de ganhos políticos de curto prazo e procuram consolidar o poder”, destacou Hassan.
O relatório, que analisa os direitos humanos em mais de 100 países, faz notar que a “indignação selectiva” dos países, nomeadamente dos que têm maior peso, e a “duplicidade de critérios” dos governos “coloca vidas em risco”, ao mesmo tempo que “destrói a confiança nas instituições responsáveis pela aplicação e pela protecção dos direitos”.
Olhando para 2023, “um ano com algumas das piores crises e desafios da memória recente”, a HRW enumera contradições: “Quando os governos condenam veementemente os crimes de guerra do Governo israelita contra civis em Gaza, mas ficam em silêncio sobre os crimes contra a humanidade do Governo chinês em Xinjiang [estão a] enfraquecer a crença na universalidade dos direitos humanos e na legitimidade das leis destinadas a protegê-los.”
A comparação entre Gaza e Xinjiang é um exemplo de uma tendência – a “indignação selectiva” e a “duplicidade e critérios” – tão ampla que um dos conflitos desta comparação se aplica a outra, no sentido inverso. Recordando o “aterrador ataque contra civis” cometido pelo Hamas a 7 de Outubro, a ONG escreve que “muitos governos que condenaram os crimes de guerra do Hamas têm tido reservas em responder aos crimes cometidos pelo Governo israelita”.
Estes exemplos “passam claramente a mensagem de que os direitos humanos podem ser aplicados de forma selectiva a diferentes grupos de pessoas e prejudicam as instituições criadas para os fazer cumprir”, defende Hassan no ensaio que abre o relatório.
“Repressão transnacional”
A HRW aponta outra tendência, a “repressão transnacional”, ou “repressão extraterritorial”, que, apesar de ser “um fenómeno de longa data”, tem crescido muito com “o aumento das comunicações, das viagens, e as novas tecnologias” que permitiram “um aumento das práticas ilegais, incluindo deportações arbitrárias, raptos e assassínios”. Neste campo, o grande destaque é dado à Índia e ao Governo do primeiro-ministro, Narenda Modi, que tem “expandido as suas tácticas repressivas além-fronteiras, incluindo para intimidar activistas na diáspora e académicos, ou limitar a sua entrada na Índia”.
A HRW recorda que em Março as autoridades indianas suspenderam vistos e bloquearam as mensagens das redes sociais de vários canadianos críticos de Modi, depois de o Canadá ter denunciado “alegações credíveis” do envolvimento de agentes indianos no assassínio de um activista sikh em território canadiano. Meses depois, em Novembro, foram as autoridades norte-americanas a acusar um homem de se ter envolvido numa conspiração fracassada com um responsável do Governo de Modi para assassinar um separatista sikh nos Estados Unidos.
Referindo como Modi tem feito deslizar a democracia indiana para a “autocracia”, com ataques a minorias, aumento da repressão e desmantelamento de instituições independentes, a ONG realça como “durante as cimeiras com Modi os seus homólogos nos EUA, Austrália, Reino Unido e França não expressaram publicamente preocupações em matéria de direitos, dando prioridade ao comércio e à segurança”.
O relatório também fala em “sinais de esperança que mostram a possibilidade de um caminho diferente”. Os exemplos vêm quase todos da Justiça, passando pela decisão, em Novembro, do Tribunal Internacional de Justiça, de ordenar ao regime sírio que “previna a tortura e outros abusos”, e pelos mandados emitidos contra Vlamidir Putin e a sua comissária dos Direitos das Crianças, Maria Lvova-Belova, por “crimes de guerra” por causa da deportação de crianças ucranianas para a Rússia e da transferência forçada de crianças para territórios da Ucrânia ocupados pela Rússia.