Documento revela artistas usados para treinar plataforma de IA Midjourney, sem consentimento – e inclui portugueses
Nesta lista de 24 páginas encontram-se nomes ligados às artes plásticas, ao cinema ou à arte urbana — incluindo artistas portugueses como Regina Pessoa, Nadir Afonso ou Vhils.
A falta de regulamentação do ecossistema da inteligência artificial (IA), e respectivos direitos de autor, continua a dar luta a artistas cujos trabalhos foram usados, sem consentimento nem remuneração, para treinar e alimentar alguns dos principais programas de inteligência artificial generativa, como o Midjourney, o DALL-E ou o Stable Diffusion, ferramentas que servem para gerar imagens a partir de instruções textuais (prompts, no original).
Durante o fim-de-semana da passagem de ano, noticia o site Art News, o Midjourney foi o alvo de um grupo de artistas, que criou um Google Sheet onde se mostra como esta plataforma desenvolveu um banco de dados de períodos temporais, estilos, movimentos artísticos, meios, técnicas e de milhares de artistas para treinar o seu sistema. E também de coisas mais prosaicas: de acordo com o Art News, uma das imagens usadas pelo Midjourney foi um desenho de um boneco de um miúdo de seis anos chamado Hyan Tran.
Posto a circular nas redes sociais X (anteriormente conhecida como Twitter) e Bluesky, o documento foi acompanhado por screenshots feitos pelo artista Jon Lam (da Riot Games, empresa de videojogos) de conversas de engenheiros de software a discutir a criação de bancos de dados de artistas para treinar o gerador de imagens do Midjourney. “Isto foi apresentado como prova numa acção judicial. Engenheiros de prompts, estas habilidades não são vossas”, escreveu Lam no X, com o hashtag “criem, não sejam sucateiros”.
Nesta lista de 24 páginas, com cerca de cinco mil nomes, encontram-se figuras das artes plásticas, da ilustração, do cinema, da animação, dos videojogos, da banda desenhada, da arte urbana ou da manga. Entre os mais reconhecíveis, estão Andy Warhol, Anish Kapoor, Yayoi Kusama, Gerhard Richter, Frida Kahlo, Damien Hirst, Kenichi Yoshida, Pablo Picasso, Ana Mendieta, Banksy, Os Gemeos (dupla de graffiters brasileiros), Alejandro Jodorowsky, ou Wes Anderson. Também há portugueses: Nadir Afonso, Regina Pessoa, Vhils, Jorge Jacinto e Add Fuel (Diogo Machado).
Laura Afonso – viúva de Nadir Afonso, presidente da Fundação Nadir Afonso (1920-2013) e detentora dos direitos de autor da obra do pintor – afirmou à agência Lusa, esta quarta-feira, que desconhecia o uso do trabalho do artista plástico por parte de empresas de IA. "Não tivemos conhecimento, nem nos foi pedida qualquer autorização", salientou, acrescentando já ter dado indicações à Sociedade Portuguesa de Autores para se associar ao processo judicial interposto por alguns artistas. Laura Afonso relembrou ainda que o direito de autor tem uma validade de 70 anos depois da morte dos autores, período após o qual as obras entram em domínio público.
Segundo o Art News, um documento ainda mais longo, com 16 mil nomes, já havia sido integrado numa acção judicial colectiva direccionada à Stability AI, Midjourney e DeviantArt, ao qual foram anexadas ainda 455 páginas de “evidências suplementares arquivadas a 29 de Novembro do ano passado”. Este requerimento foi apresentado depois de um juiz do tribunal federal da Califórnia ter rejeitado várias acções direccionadas contra o Midjourney e DeviantArt a 30 de Outubro.
O facto de milhares de trabalhos artísticos serem utilizados sem permissão por geradores de imagens de IA levou investigadores da Universidade de Chicago a criar uma ferramenta digital que alegadamente ajuda os artistas a “envenenar” conjunto de imagens, de modo a desestabilizar o processo habitual da passagem do texto para a imagem.
Apesar das dificuldades em negociar com os gigantes da tecnologia, há algumas iniciativas de relevo nesse sentido. Os artistas e investigadores Mat Dryhurst e Holly Herndon criaram a plataforma Have I Been Trained? e a organização Spawning AI, que fornece meios para que os artistas optem por participar ou não participar [o chamado opt-in e opt-out] nas bases de dados de IA, entregando essas solicitações às empresas e às plataformas que hospedam conjuntos de dados. Já conseguiram ajudar a retirar mais de mil milhões de imagens.
Para muitos especialistas em IA e tecnologia, o problema reside na falta de transparência e consentimento desta nova economia. “Da maneira como as coisas são feitas hoje, não se rastreia quem é que providencia as informações originais. Se tiveres uma pintura, um livro ou uma canção que foram gerados por IA com base no trabalho de escritores, artistas ou músicos específicos, o sistema não te diz quem são as fontes criativas originais. Isto é um bocado como roubar. É desonesto”, disse o célebre tecnólogo americano Jaron Lanier em entrevista ao PÚBLICO no ano passado.
Com Lusa